Francisco Miguel de Moura
Escritor, da APL
Meus tios Joaquim e
Otaviano, que eram os mais novos, cavaram um buraco na terra molhada,
em frente à casa de meu avô materno, àquele tempo já falecido.
Não os vi cavando. Quando saí para o terreiro, o buraco estava à
minha espera.
Minha idade, não sei.
Calculo em 4 ou 5 anos, que é de quando a gente começa a gravar o
que se passa de importante em redor de si.
Nossa memória é
seletiva, grava momentos ou fatos pela emoção, pelo sentimento que
desperta, por outras razões desconhecidas que até hoje procuro
descobrir.
Aquele buraco de minha
meninice é um marco importante na minha vida. Sempre que ponho os
olhos para trás, ele me persegue. É como se alguém sempre me
estivesse advertindo:
- Olhe o buraco, Chico!
Cuidado!
Os dois me pegaram pelo
sovaco, um de um lado, outro do outro, e me colocaram dentro.
- Agora, saia daí, seu
danadinho!
Qual a fundura, não sei.
Do alto dos meus 64 quatro anos, ou seja, 60 anos depois, a
perspectiva que tenho é de que o chão, fora do buraco, ficava acima
de minha cabeça qualquer coisa como um palmo. Quando a gente é
criança os objetos, as pessoas, as paisagens nos parecem
deslumbrantes, assombradoras, grandes demais para o nosso alcance. É
assim que vou dar um desconto e dizer que o buraco era menor que o
meu medo. Medo de não sair de dentro. Senti que não tinha condição
de sair, por mim mesmo, daquele fosso. Na verdade, os buracos da vida
são assim: não temos condição de sair deles sem ajuda. O homem é
um animal muito fraco. Começa com o nascimento. Vem a parteira
ajudar a mãe e o filho. Daí, até a gente poder andar por suas
próprias pernas, temos os nossos pais, nossos irmãos mais velhos,
primos, tios, vizinhos, amigos a nos socorrerem.
Acredito que meus tios
quiseram me pôr à prova.
- «Este menino malino
agora vai ver...» - devem ter pensado.
Eles riam a valer. Será
que eu tinha feito algo errado para que me castigassem daquele jeito?
Se era brincadeira, nunca vira brincadeira tão besta.
Chorei, gritei por mamãe.
Ela não me acudiu, devia estar distante.
Tiraram-me. Não me lembro
bem como nem quando me tiraram de lá. Só vejo o buraco e o sufoco
de como me levaram pra dentro, sem explicação.
Naquele tempo, contavam-se
muitas histórias de tesouros encantados. Assim. Os ricos guardavam
seu dinheiro debaixo do chão, para não serem roubados. Mas o pecado
de sua avareza era castigado. Quando procuravam de novo, necas, as
patacas de ouro e prata haviam desaparecido. Só quando morriam,
suas almas penantes falavam aos bons cristãos, através de sonhos, e
pediam que fossem desenterrar o tesouro. Ensinavam como devia ser: de
noite, sozinho, rezando, sem maldade, senão o demônio vinha
atrapalhar, e o dinheiro transformar-se-ia em abelhas ou formigas.
Então, esse buraco de
minha primeira infância, bem que meus tios podem tê-lo encontrado
pronto, de manhã, e, com medo, não o entupiram logo. Seria de
alguém que recebeu recado de uma alma e ali encontrara o tesouro -
dinheiro enterrado. É que aqueles buracos, segundo a tradição, não
deveriam ser entupidos pela pessoa que desenterrava a fortuna.
Como estava bem de frente
com a «latada» da casa de meu avô, quase no meio da estrada,
talvez fosse vestígio do seu pecado. Ele, então, acabava de ser
salvo. Por respeito...
Não. Não teria sido de
meu avô materno, nem de minha avó, que eram pobres. Não tinham
dinheiro suficiente para enterrar. Isto minha mãe me contou depois.
Tudo o que alcanço hoje,
com a memória, é que meus tios riam e eu chorava dentro do buraco,
sem entender nada. Como ainda hoje não entendo.
Como ninguém me falou
deste buraco, fica-me, assim, como uma representação do mundo
original: um buraco!
A vida começa num buraco
e termina noutro, depois de tantos anos - reflito.
Mas ela é tão gostosa
que vivemos procurando entupir esse buraco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário