Sonetos da Paixão











UM CONTO UNIVERSAL DO AMOR

“para isto fomos feitos:
para lembrar e ser lembrados
para chorar e fazer chorar
                                                          para enterrar nossos mortos.”
                                                                                            Vinícius de Morais

PRIMEIRO


Muitos anos depois tento alcançar
o que perdi em tantas horas tardas
e é impossível de recuperar-se.
A manhã era clara e o sol batia,
espalmado, em meu quarto, pelos olhos.
Fora, um jumento bufava de cansaço,
a ladeira descendo no serviço
de levar leite à lerda freguesia.
(Eles não pensam que o jerico existe,
é porque dormem mornos, enfastiados
das festas e banquetes e conquistas.)
Da natureza, o` pobre renegados!...
Só meus olhos e planos não repousam:
- Procuram borboletas pelos prados.


SEGUNDO


Outro dia - era sábado de chuva -
cheguei, dormi cansado como o diabo,
da faina anterior (na plantação),
quando co`a que seria minha amada
plantei de milho, abóbora e feijão,
toda a rocinha ali detrás da casa.
É possível que tenha me deitado
sem pensar no domingo que viria
e que Rosinha, de vestido novo,
no povoado ia rezar a missa.
E convidar-me que com ela fosse
deixar um óbulo aos pés de sua santa.
E o gosto de suor dos nossos beijos,
daqueles dias, me embriaga e espanta.


TERCEIRO


De manhã, levantei-me espreguiçando.
E em seu fato de chita ela chegou.
De acanhamento, mal me deu bom dia,
que quase se escondeu e nem falou.
E eu me afligi, assim, despenteado,
pedi licença para um banho frio.
Diante da mesa, Rosa me esperava,
mas seu olhar jamais me censurou.
O resultado foi perder-se a missa
daquele dia, que era uma promessa
(ela depois, por longe, me falou).
Nosso castigo foi que adoeci
de varicela, e estando tão dodói,
cuidava ela de mim. Como cuidou!


QUARTO



Essas coisas cativam todo o mundo,
e assim grande paixão me apareceu.
Ela falou: «Seus olhos são bonitos».
«É mentira» - eu lhe disse - «são os seus».
A sorte cega, às vezes, nos aclara,
sei que fui cego, muitos anos, muitos,
vendo Rosa crescer, sem reparar
no seu rosto, no corpo, na sua alma,
feitos pra mim. Como se adivinhar?
Ou saber que Deus faz as criatura
e se encarrega o Demo de as juntar?
Se nos amamos antes do prazer,
se nos perdemos antes de chegar,
como haveria agora de saber?


QUINTO


Sabe você, amigo, em que falamos,
noutro domingo, até chegar à igreja,
e já saíam padre e sacristão?
Da burrinha, a gostosa montaria,
por mim apelidada «Burundanga»;
de quando nos banhávamos no açude,
nus e brincando de galinha d'água.
Fazia apenas três anos atrás.
Rosa menina nem saber sabia
da vida que transforma e traz amor.
Eu vi nascer-lhe os peitos miudinhos
e ela dizia: «Pega aqui, tá grande?»
E eu pegava e dizia: «Não, tá não.»
Havia muita e mútua confiança.


SEXTO


Sinceramente é esta que me quer,
sabe da alegria e da tristeza,
da dor, da fome, e sabe do mister
que amor reclama: o fogo, aspereza.
Esporeei a mula pela estrada
e resolvi o que não se resolve
em um ano: falar com o senhor padre
para casar a gente logo-logo.
E ele? Não concordou com meu delírio.
- Assim como quem foge não se faz,
tem que «correr os banhos» e vestir-se.
E sob o olhar de Deus, o' meu rapaz.
- Não, seu padre, não posso resistir!
- Filho, não caia aos pés de Satanás.


SÉTIMO


Foi assim que cortamos o destino
e na cidade próxima casamos
com dinheiro tomado a conhecido.
Já não tinha coragem de voltar.
Fui eu ficando a trabalhar no ofício:
- «Ajudado por Deus e por Rosinha,
a minha conta pagarei um dia.
Faço a fazenda do patrão crescer,
e ninguém sabe porque aqui se escondem
Rosinha e eu e a felicidade,
cantando esta canção só de nós dois.»
De mim ela gostava e eu gostei dela:
Guardava o gado do patrão - e ela,
o nosso rancho de manhã à noite.


OITAVO


Quando eu uso o presente, meu amigo,
é porque vivo ainda no passado.
Essa maneira de sofrer o antigo
fez-me obtuso, misterioso e alado.
Uma ilusão que dura internamente
como se fosse o próprio coração,
voltando os nossos passos do presente
ao que se foi, buscando tempo e chão.
Ninguém saber da nossa vida ali.
Nosso mundo pequeno como o quê,
banhado em cantos, risos e suor,
por testemunha - a porta (e a janela).
Mas, que pena! A Rosinha se danou.
E eu me danei também e larguei dela.


NONO


Fiz farras e morri já muitas vezes,
mas voltei à casinha de meus pais.
Se me lembro de Rosa? Lembro, sim.
A vida é uma coisa por demais
destinada ao sofrer só para amar.
Mesmo a sorrir diante do que jaz
ou a zombar dos mundos abstratos,
e consolar-se em sonhos e palavras.
E neste passo, eu vivo com meus bichos,
com os vizinhos todos, lado a lado,
que às pessoas dou-me em pouco agrado.
Quem me consola e anima é a natureza:
Renasço com as manhãs de sol no campo
e morro, à tarde, à sombra da tristeza.


DÉCIMO


O mugido das vacas nos currais
assume proporção, em meu sentir,
capaz de recordar e esquecer
da igreja, do sino e de Rosinha,
que não me deu o desejado filho.
Nem não pode sorrir à dor materna,
para tomar vergonha e ser melhor
que no passado e ainda no porvir.
Ah, o céu chove um pote de tristeza,
nestes dias de chumbo e inchação
dentro de mim - também na natureza.
E se faz sol como naqueles tempos
de namoro e casório (e mais distante),
me sinto forte e do portal me esqueço.


DÉCIMO PRIMEIRO


Tenho paixão, porém, por essa lua
banhando a terra e o cabelo em prata,
que a nossa fuga já vai tão distante
e a minha fuga não vai mais passar.
Aquela noite livre é quem me mata:
Poeira e amor na estrada resolvidos
em alvoroço, escuridão, silêncio,
pio das aves, agouros, arrepios.
Mas onde o medo, se o amor resiste
e, selvagem, campeia nosso corpo?
Como pensar o leite, o vinho, o ópio?
Ao céu, o chão de lua me elevava,
e o céu da lua até meu corpo vinha.
Oh que estranho mistério eu cavalgava!


DÉCIMO SEGUNDO


Mas de que vale agora arrepender-me?
Se encontrasse Rosinha, me ajuntava
(com aquela lua e noite) inda uma vez.
Embriaguei-me na paixão mais crua,
na dor violenta de quem não quis crer
nos limites do amor sem amarguras.
E os meus fracassos, eu que não sou velho,
vou contando a quem vai e a quem vem,
mesmo as mais simples, reles aventuras.
Pergunta, então, quem bebe, o amargor
do cálice que na goela vai descer?
Não sei direito, sei que desta história
preciso saborear sem ter, embora,
nenhum direito de me aborrecer.


DÉCIMO TERCEIRO


Ela não volta, eu sei, não pode ser.
Morte de amor não dá ressurreição.
Envelheceu em noites mal dormidas,
como as sombras perdidas pelo chão,
se abismando de lodo e fantasia.
Sou carente de amor e de ternura,
por isto tenho medo sem querer
e, de outras vezes, mostro cara dura.
Meu feijão afervento com toucinho,
minha roupa que seque nos arames,
a rede armada ali, no meu cantinho.
Chorar não choro, rir também não rio.
Mas uma coisa (ou dez)? sobe-me à goela:
- Será angústia, solidão ou frio?


DÉCIMO QUARTO


Enfim, de homem logrado é minha história,
de homem sem pose e só, e muito estranho.
A semente perdida dos desejos
que a paixão lá esconde atrás do pano.
Que seiva, que mistério me sustenta,
sem ilusão da própria trajetória?
De que vivo? De um fio de esperança
que me liga ao passado, na memória?
Crestada árvore, nem quero vingança:
- Quero um túmulo em lájea mamórea.
Mas «navegar preciso pra viver...»
E que a morte - vitória do fracasso,
humildade com orgulho num abraço,
possua totalmente o que é meu ser.

_________________
SÃO 14 SONETOS - Publicados pelas Edições Cirandinha, 1988 - Teresina, Piauí - 1ª Edição - Autor: Francisco Miguel de Moura - Livro Registrado na Biblioteca Nacional, na Secção de Direitos Autorais.

CRÍTICA - DUAS CARTAS
1ª Carta ao Autor

Teresina, 18 de dezembro de 1988.

Meu Caro Chico Miguel:

Creia-me um seu leitor que o lê com agrado. O primeiro livro seu que li foi Universo das Águas; li e gostei – pureza de estilo, comportamento corajoso de ser humilde com essa incrível humildade que não humilha, uma atitude que só eleva; sinceridade transbordante em expressões seguras de quem sabe dizer, com arte, tudo o que deseja e quer.
Li também, ao depois, algumas prosas sob a forma de críticas e contos – onde percebi saber e verve. Mas eu gosto mesmo é do seu poetar – solto, descompromissado e denso de vida.
Sabe, Chico, daquele provérbio que, de tão batido, como todos os bons provérbios, é um lugar comum – aquele que diz: “é nos pequenos frascos que estão as grandes essências”?
Pois, para mim, o seu maior livro é exatamente o menor: esta plaquete de sonetos que você apropriadamente chamou de Sonetos da Paixão. Nele você se revela como homem sensível, intimista, sincero, fazendo sua catarse e desafiando preconceitos, parecendo dizer, como J.G. de Araújo Jorge: “Não me envergonharei nunca de falar de amor.”.
Muito obrigado, e aceite um afetuoso abraço do
Humberto Guimarães
- da Academia Piauiense de Letras

2ª Carta ao Autor


Porto Velho, 14 de julho de 1990.

Amigo Francisco Miguel de Moura
Rua Raimundo Portela, 1003
Teresina, PI

Apraz-me responder a sua valiosa missiva, a qual me trouxe mais força para somar ao ânimo de luta pela nossa tão discriminada Literatura, dentre as variantes da Cultura. Como sabemos, sentimos o fardo desse ônus que a sociedade nos legou ao arrepio da qualidade literária. Somos – os alternativos – relegados à tangente do processo de política cultural ditado de “cima para baixo”, à deriva da situação.
Recebi o seu material literário e fiquei contente por esta remessa. Achei fascinante o livreto Sonetos da Paixão, a começar pela capa: muito poética mesmo; e de aspecto bucólico – identifica-se fielmente com a temática. Depois vem o tratamento com a forma de composição. Para mim algo inédito, mas, sem dúvida, revolucionário: esta sua maneira de fazer soneto, juntando os quartetos e tercetos num corpo só. Isto, porém, são coisas que só ao poeta e à Poesia – é facultado, para a beleza da arte.
Desse seu Um Depoimento Pós-moderno gostaria de ter a sua permissão para divulgar algumas destas definições da penúltima página (pg. 13). Caso seja possível. São preceitos bem contundentes, apesar de todo o conteúdo do folheto ser ótimo; uma linguagem simples, de muita profundidade filosófica e moral. Também, pudera, com toda essa bagagem cultural já é mesmo pra ter acumulado larga experiência.
Aí segue um artigo que publiquei no jornal local, para sua apreciação. É um prazer ter a sua crítica.
Atenciosamente, do amigo
Zeca Domingos’ilva
Caixa Postal 579


DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR:
Francisco Miguel de Moura, poeta brasileiro, mas também prosador (crítico literário, romancista, contista e cronista), já publicou 32 livros. Nasceu a 16 de junho de 1933, no lugar Jenipapeiro, do município de Picos = PI. Tem curso superior de Letras e pós=graduação em Crítica de Arte, o primeiro feito em Teresina, o segundo em Salvador - BA, ambos nas Universidades Federais.

Um comentário:

Cristal de uma mulher disse...

Meu amado e grande escritor.

Venho em nome da essência das letras e o facínio da escrita , agradecer tua honrosa presença em meu canto de pássaro romântico. Do amor ao extraordinário sentimento de unir vidas dentro do casamento entre homens e mulheres que ainda vivem de sonhos eternos..

Obrigada amigo e grande escritor,porque hoje tive o prazer de reve-lo depois de uma ausência longa entre eu e você..As vezes amigo nos afastamos pelas rotinas e perdemos o que de melhor existe ( Seus escritos ) , uma mesclagem de vida dentro de metáforas magníficas e mentalmente sensíveis ao real dentro dentro de irresistíves cenários de vidas reais e irreais que só um poeta e escritor sabe simbolizar..Parabens homem que hoje a tua existecia pode nos trazer do bom ao melhor de uma vida inteira..

Levo teu Banner ao meu blog de Perfume de uma Mulher para que quem me visitar possa também saborear do perfume de um grande escritor..

Parabéns sempre meu querido.

Rachel -Cristal

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