Poesia in Completa

9º LIVRO DE POEMAS: "POESIA in COMPLETA"

Francisco Miguel de Moura*






O HOJE


certamente inda te adias
pois teus olhos se clareiam
ante a brisa e a paisagem
- que o horizonte é um presente
velejado por rostos escolhidos

mas não atrases teu amor
ao irmão que sofre o preterido

alegria, alegoria
o coração pede ritmos e pulsos
não é nenhum covarde

nem guarde restos e pedaços
de impressentidas elegias

o hoje é tudo o que se tece,
que bem tecido é odor, sabor e prece
em indistintas simetrias.

o amanhã não é teu dia
se hoje não tiveres empatia
com o razoável mundo e o sem-razão.

o ontem não tem clave se te agravas
em sentimento de ódio e entropia
como veio
de teu canto, em toda a via.

colhe a flor que está à mão.

O ONTEM

ontem foi o tempo emocional

assim, como passar
uma esponja
sobre o mal?

e o passado seria mortal

mas uma esponja
embebida do homem
embeberia a coisa:
- na verdade, o mal

um tempo sonâmbulo
que se gravou como um sinal
(esquecer não precisa
nem pode, é tão real)

ontem: eis o tempo que fica
como fundo do tempo
e sem rival.

O AMANHÃ

o amanhã virá
compor-te na teia
do in(completo)
nunca tecido
olho-boca-ouvido
seja fala ou prece
seja foto ou fluido
de luz desejada
paixão não vivida

é limbo incriado
é amor temido

poeta, recia
sem receio
- e recria
teu inteiro futuro

quando o hoje não for mais
essa será a glória
do teu dia.

E O SEMPRE

o hoje se esfume
o ontem se de/pedra
o amanhã quem sabe?

não há sempre
e há o sempre
sempre
sempre
não é começo
não é fim
não é processo

é um tempo sem tempo
nem temporal
nem tem/porão

semper
semper
sem-
per-
seguição

o tempo neutro
dá cacetadas no infinito.

ANTES E DEPOIS

quem saberá se um dia fomos?

e por que auscultar o passado
se se passa
adiante
sem liame de gostos ou de falas?

quando as luzes se apagam
quem diz para onde e a que vamos?

para o vazio e para a morte
de onde deveremos voltar como visões?

vamos para onde não vamos
para além da vida e da morte
onde não há sábios.

quem saberá se um dia fomos?


O REU

a tarde tropical gelou virtualmente
o sangue me ferveu
depois sumiu
depois choveu no coração deserto
o fértil da semente

triste engano de quem viu
com alegria (espinho e pétala)
o páreo resevado de "eus" e "vaidades"

minha nuvem de sabor sereno e raro
desce
e se adensou
por uns olhos que ofuscavam as estrelas

a vênus (derrotada)?
encontra as formas belas
do desvio pré-parado:
- segmentar o caminho do ceu

era deusa e segurou no meu braço
no meu queixo, no meu lábio
pelo amor descendo em contramão
do que seria eternamente grato
- e chato!

- e reu.

O CHEIO E O VÁCUO

o nada e o tudo soam nardo
e ab(sinto):
- ab(surdo) na amplidão
dos homens e dos bichos satisfeitos
(inseto ou dinossauro)

cai sobre mim uma poeira
cósmica coceira
de saber
o que constante me devora
e a paciência
me explode em palavrão

palavras vãs, palavras vão
e vêm
cortar o silêncio amplificado
de tudo quanto é voz

não há imposturas, há correntes
de sangue, sabor, gestos(contrários) parados
água e calor que luzem

nardo é nada
ab(sinto) é liberdade:
- um nome sem tempo e com paixão

palavras vêm, palavras vão
soltas ao vento e zunem no telhado
das nuvens e dos astros
mas nada produzem:

- falta espaço
e como vêm, se vão

o mundo em seu bailado, no universo
é impiedade
e tudo cala.
a fala morde a dor do falante
entre dentes, trovões, cometas...
e outras tralhas.
deus se evola e bebe as águas
do abismo
onde se banha

e não há vácuo - falta tempo
e não há cheiro - falta onde pairar.
só deus explora o esquecimento
do existir.


 


CRÍTICA LITERÁRIA:




 
FRANCISCO MIGUEL - 30 Anos
de Tensa Comunhão com a Palavra

escreveu:  
NELLY NOVAES COELHO

O tempo pede escuro
E eu grávido de mim mesmo.
in Quinteto em Mi(m)


Aí ouvimos a palavra do poeta (consciente de ser ele mesmo o único centro de apoio que lhe resta neste mundo-em-caos) que, obscuramente, vem assumindo a tarefas de substituir a Palavra Revelada de Deus (pedra-base da nossa civilização herdada) que a Ciência, em seu espantoso progresso, acabou por destruir, sem ter podido ainda preencher o «buraco negro» que suas descobertas cavaram. Metaforicamente, é isso o que diz Francisco Miguel de Moura, quando aponta para a contradição existente entre o mundo à sua volta, - mergulhado no «escuro» (antigos valores destruídos e ausência de novos caminhos ou certezas) e o súbito vislumbre da força criadora, latente em seu próprio eu, - a intuição de sua ambígua força interior, força geradora de nova vida, mas ainda informe. Isto é, impotente, à espera da forma que a revele claramente, como os novos alicerces de que o mundo-em-caos precisa, para se reordenar em novo cosmos. (Quando? em que altura do Terceiro Milênio? Sabemos que o processo é lento.)

Claro, no mundo escuro
um velho deus procuro
ainda imaturo,
e que estaria em mim.
(«Pensamentos» in Bar Carnaúba)


Mas enquanto esse «reencontro» não se dá, o poeta se divide entre a verdade antiga e a nova ainda não vislumbrada:

alma lama
mala
corpo porco
e onde fica a chama?
(«Brinquedos meus» in Bar...)

Cindido entre a origem divina (alma) e a matéria desprezível (lama) a que a Ciência reduziu a condição humana, o poeta se interroga sobre «chama» que sente em si como obscura verdade última.

O início desse interrogatório em poesia se fez caminho nos poemas de Areias, nos idos de 1966. Caminho ainda incerto, hesitante, tateando o desconhecido, mas já pressentindo a grande força da poesia como nomeadora do Real. Outros livros foram surgindo (1), iluminando aqui e ali outros desvãos desse mundo-cão que é o nosso século, onde fermentam os contrastes humanos e sociais mais violentos e aparentemente indestrutíveis. Assim, embora sentindo o poder conscientizador de sua palavra, o poeta está dividido entre forças contraditórias que impulsionam e travam sua expressão poética:

Forcejo vencer
as grades do verbo
como o boi quer
voar
e pesa mais, e mais, mais.
(«Impossibilidades» in Quinteto...)


As metáforas são claras: é a eterna luta pela expressão, que depende da palavra linear, sucessiva e por natureza redutora, para revelar a simultaneidade e o ilimitado das emoções, sensações, reflexões, rebeldias que o poeta anseia por comunicar, desafiando as «grades do verbo».
Foi principalmente essa «luta», essa problemática existencial (muito mais do que estética ou ética) que mais se impôs à nossa atenção, na recente releitura que fizemos da obra poética e ficcional construída pelo poeta, romancista, ensaísta e acadêmico piauiense, Francisco Miguel, nestes últimos trinta anos de corpo-a-corpo com a palavra. (Problemática que, a nosso ver, o inclui na esfera da Geração 60, como veremos adiante.)

Fincada na realidade concreta do cotidiano, no dia-a-dia comum, onde a vida acontece, a poesia (e também o romance) de Francisco Miguel é denúncia contundente do mundo-cão em que vivemos e, ao mesmo tempo, é a grande força de resistência ao contínuo esmagamento do homem pelos «laços do poder», ainda hoje vigente, não só neste nosso Terceiro Mundo (onde evidentemente esse esmagamento é mais visível), mas nos chamados Primeiro e Segundo mundos, também altamente minados pelo terrível jogo dos poderes. A realidade em carne viva, que a poesia - e principalmente o romance «Laços de Poder», de Francisco Miguel, nos mostram em terras piauienses, é apenas um índice (doloroso, é certo!) do que acontece em todos os quadrantes deste Brasil, - presa fácil do poderes arbitrários, despóticos e desumanos que têm raízes em nossos tempos coloniais, - «raízes» evidentemente adubadas, com o correr dos tempos, pelas brilhantes conquistas dos nossos tempos, principalmente em matéria de manipulação das massas. Que a leveza ou a aparente displicência que permeia a poesia-do-cotidiano, recolhida em seus livros, não nos engane quanto à contundência de sua matéria. Com o humor tragicômico que permeia seus poemas, o poeta ironiza a ausência, no meio provinciano, de altos ideais que estimulem o engrandecimento interior dos homens, ou, o que é mais grave, o repúdio que recai sobre os que ousam buscar caminhos mais largos.

Nesta cidade, ignorar é prêmio
e aos mortos a morte não grita.
Neste cidade branca de sol e cal
um cemitério se instala
(de vivos)
(«Ordem e Progresso» in Bar...)


O Piauí, amputado de vida plena, lhe dói, como S. Luís do Maranhão dói em Nauro Machado, o Vale do Itajaí dói e vibra no catarinense Lindolf Bell ou S.Paulo em Álvaro Alves de Faria ou ainda os pampas enchem de espaço e energia a poesia de Carlos Nejar ou, ou, ou... e percorreríamos, assim, todos os Estados deste caleidoscópico Brasil. Mas o importante a notar é que a nomeação dessa «dor» não é lamento, - é antes um ato de rebeldia, de auto-afirmação do poeta que, embora sabendo-se impotente para alterar as coisas, sente obscuramente que, ao nomear o «escuro», está ao mesmo tempo semeando a luz que há de vir. Com diz Francisco Miguel:

caminho para dentro até o fundo
como quem caminha ao sol-posto.

Aparentemente caminhando para o escuro que sucede ao sol-posto, o poeta na verdade vai em busca do sol que se escondeu de sua vista, mas que ele sabe que está lá à sua espera, em algum lugar ainda por ele desconhecido.

É essa intuição que marca a diferença entre a denúncia social de ontem (do nosso Regionalismo), daquela de hoje. Como sabemos, essa denúncia (de fundas raízes políticas) não é novidade, pois vem sendo feita abertamente pela literatura desde os anos 30, quando a literatura regionalista revelou as brutais desigualdades sociais que estavam na base dos diferentes Brasis que compõem o nosso território continental. O «novo» desta denúncia mais recente está, sem dúvida, na nova postura do poeta. Postura que, já nos idos de 70, pressentimos como algo diferente, expresso por algumas das novas vozes que vinham se fazendo ouvir e que nos ocorreu chamar de «novo épico» (2). «Épico», porque o poeta se assume em gesto, em ato poético, em ação transformadora (como sempre foi da natureza dos heróis épicos); e «novo», porque em lugar de o poeta se afirmar como «herói» (um ser de exceção, o vitorioso que avulta sobre os demais que perderam), ele assume abertamente sua condição humana, com suas fraquezas, derrotas, impotência, efemeridades... mas intuindo nela uma grandeza obscura e indestrutível, que responde pela construção e continuidade da vida e, sem a qual, esta não se cumpre. É o que diz Francisco Miguel no poema «Um»: «Não ganhei nem perdi: /senti desespero e desânimo, /os gestos a falarem. / Mas preciso voar... (...) Perdi-me como um rei.» É no âmbito desse «novo épico» que sua poesia (e a ficção) se desdobra. Mas não sem oscilações. Ora, o que nela predomina é a consciência de esmagamento inevitável do homem, pelas forças do Poder que aprisiona tudo e todos:

Eu me perco todo
na corrente frágil
- aurora do cárcere.
(...)
Um eu dividido
um eu triturado
átomo vencido
fogo apagado.
(«Formas» in Quinteto... )


Ora, é a consciência da grandeza indestrutível do ser:

O rio da vida
seco
O rio da morte
cheio
Não rio
não choro
não canto
Expectante
invicto
estou
no meio
estou.
(«Epigramas» in Quinteto...)


«Expectante», «invicto»... são expressões que apontam para a obscura força interior que energiza o poeta da Geração 60, na qual incluímos, como de direito, o piauiense Francisco Miguel de Moura.

E a esta altura, lembramos de certa afirmação do saudoso gaúcho Viana Moog: «O Brasil é um arquipélago cultural, os Estados são ilhas.» Grande verdade. Mas curiosamente constatamos, com relação a essa possível Geração 60, que a despeito da quase ausência de mútuo conhecimento cultural e literário entre a maioria dos Estados (com exceção daquilo que repercute no eixo S. Paulo/Rio de Janeiro), existiam fatores comuns a identificarem entre si poetas (ou ficcionistas) surgidos durante a década 55/65, em praticamente todos os Estados do Brasil. O que, obviamente, prova a existência e a atuação invisível de forças culturais geratrizes, intercomunicantes; fontes ou influxos inovadores que, a cada época, de modo direto ou indireto, transmitem a ou inoculam em cada espírito criador, uma mesma inquietação ou preocupação com determinada problemática-de-raiz, - aquela que, com o tempo e o amadurecimento das formas, permite que, para além da multiplicidade das vozes ou faces apresentadas pela nova produção literária de determinado período, encontremos fatores comuns a assemelhá-las entre si.

No caso específico que aqui nos ocupa - a Geração 60 - será difícil ou quase impossível determinarmos com exatidão a natureza de todas as sus possíveis fontes, mas pela comparação entre as diversas vozes dessa multiforme produção poética, chegamos a algumas que nos parecem bastante evidentes. Como, por exemplo, os rastros de João Cabral (com seu rigor ascético na busca da palavra e de uma nova construção do real); os rastros da poesia-do-cotidiano de Carlos Drummond; o novo enfoque da Poesia Concreta (com a instauração da Palavra como um valor-em-si a ser explorado) e da Poesia Práxis (com seu projeto de poesia-em-ato ou poesia-ação. Ou ainda, ao nível de concepção-do-mundo, parece evidente que pelo menos duas diretrizes opostas fazem-se presentes nessa extensa produção poética: uma é a do naufrágio existencial em que o homem submergira desde os primeiros anos do século; e outra, o fervor do engajamento social que os tempos de fermentação intelectual e política estavam a exigir. Portanto, esses e outros fatores comuns a poetas tão díspares parecem legitimar a idéia de que pertençam a uma determinada «geração» (como é o caso de Francisco Miguel, em cuja obra, todas essas «fontes» podem ser rastreadas).

Pedro Lyra, em sua recente antologia, Sincretismo - A Poesia da Geração 60 (incluindo 45 poetas de vários Estados) se apóia no critério de «geração etária» levando em conta a data de nascimento, relacionada com etapas de surgimento, evolução e declínio de cada poeta). Por nosso lado, optamos pelo critério de «geração literária» ou «geração cultural». Ou seja, o que legitima cada poeta no contexto dessa Geração 60 não é a sua idade cronológica, mas a sua idade mental ou cultural, a sua sintonia com certos vetores ou coordenadas inovadoras, tais como as que referimos mais acima. Coordenadas que, como sabemos, começaram a se configurar já nos anos vanguardistas do início do século (Modernismo, Antropofagismo, Poesia Pau Brasil, etc.) e ao longo dos anos foram-se firmando, modificando e crescendo ao incorporarem, gradativamente, as novas teorias do conhecimento que estão se transformando nos novos fundamentos do saber do nosso século (Linguística, Fenomenologia, Estruturalismo, Semiótica, etc.) ou as novas filosofias que rompem com o passado ou o transformam (o pensamento nietzschiano, o existencialismo de Heidegger, Sartre ou Camus; o socialismo de Marx; o espiritualismo pagão de Kazantsakis e outros, etc. etc. ) todas elas enfatizando o Eu consciente de si e do Outro, como novo centro de um mundo descentrado... reinventando a Palavra como criadora (e não apenas representativa ou imitativa) do Real; e redescobrindo o Homem (ou o Poeta) enraizado no cotidiano, como o elo vital e insubstituível da quase infinita corrente (malha, trama?) da História (ou da Tradição) por ele herdada e a qual lhe cabe transformar e dar continuidade, neste espaço-tempo em que lhe cumpre viver.

A obra de Francisco Miguel é das que vêm sendo dinamizadas por esses vetores de força. Oscilando entre a consciência do naufrágio existencial e do compromisso social, o poeta se alicerça na vida cotidiana, no dia-a-dia concreto, banal, repetitivo e amesquinhador, por onde o tempo e escoa e a vida se realiza.

Cadeira na calçada
Um poeta sentado.
Calor.
Amor.
Pensar:
(...)
Comunguemos a verdade,
nas indizíveis coisas,
tudo mais são boutades.
(«Ode aos costumes» in Bar...
)

Drummondianamente, o poeta faz desse cotidiano incolor, mas essencial (e muitas vezes sutilmente violento) a matéria de sua poesia maior. E vira do avesso as realidades: mesmo confirmando os limites, o pouco ou o raso a que o viver cotidiano condena o homem, a palavra do poeta vibra tão tensa, que acaba por neutralizar o negativo ali patente, e sugerir a grandeza latente que criminosamente foi abortada.

No meio, solidão, silêncio e mato.
E pedras foram gente e são granito.
(...)
E ouço essa maravilha que não cala:
A voz que gritou ai, sofreu, e amando
morreu, para viver além-desejo
e estar lá onde está, mesmo não estando.
(«Tempo e Pedra» in Bar...)

Ou ainda:

Estranho mundo morto
sangrei teu suor
falto de vez e voz
(...)
Engulho o verbo ser
no espelho de tua fronte:
-NIHIL NIHIL NIHIL
até doer
e a dor maior gritar
não poder.
ESSE PODER NENHUM.
(«Lotus» in Quinteto...)


A denúncia desse «poder nenhum» (que é, na verdade, um poder arbitrário e absoluto podendo reduzir o ser a nada, aqui intensificado pelo termo latino nihil), na arte de Francisco Miguel, atinge o seu tom maior com o romance Laços de Poder (escrito em 1985 e publicado em 1991). Narrativa labiríntica, fragmentada, dialógica, em que as vozes narrativas gradativamente vão-se emaranhando (e, ao mesmo tempo, obscurecendo a possível identificação de cada uma) a desse romance é, em nossa ficção, uma das mais contundentes denúncias dos limites mutiladores de vida, que se impõem como sistema, à maioria do povo brasileiro, desvalido, espalhado por esses rincões a fora (ou nos grandes centros...). Em sua trama narrativa, se misturam: - a esterilidade desumanizante do trabalho burocrático ou da mesmice rotineira, controlado por medíocres gananciosos; e - a feroz arbitrariedade dos poderes ocultos (ou não tão ocultos!) que pululam em cada canto do país, se instaurando com lei absoluta (em conluio com os governantes oficiais) e, soberanamente (ao sabor do arbítrio de déspotas), decidem da vida, da morte ou simplesmente da degradação moral e física de cidadãos, cuja única culpa seria ousarem pensar livremente ou não vergarem a cabeça.

Organicamente construído (problemática e linguagem narrativa em perfeita correlação), o romance Laços de Poder se inicia com uma narrativa objetiva, direta, aderida ao dia-a-dia corriqueiro, comum e estéril de um pobre diabo, - o personagem-narrador (Cirilo, empregado tímido e servil do banqueiro Aristóbulo), e aos poucos vai deslizando para o avesso das realidades visíveis e afundando no mundo-cão, semi-oculto (porque o medo leva todos a não verem nada) sob formas burocráticas e aparentemente pacíficas, do convívio social.
A narrativa fragmentada vai-se desenvolvendo em clima de pesadelo, com mais perguntas do que respostas; e deixando escapar pelos seus interstícios a maldade, a violência de que os poderosos são capazes para aniquilar inocentes que tiveram a audácia de pensarem livremente. É o caso pungente de Bartô que, como um aguilhão, atravessa a fala de Cirilo, de ponta a ponta do romance, - um Cirilo que, afinal, representa a «consciência infeliz» que perambula pelo romance contemporâneo...

Neste romance, denuncia-se o mundo de desigualdades violentas e da conseqüente degradação humana que está na base do Sistema (ou forças ocultas?), que nos governa de fato. E permeando todo o horror desvendado, há uma interrogação latente e agônica que fica sem resposta. Por quê? Como começou? Como chegamos a este estado sub-humano de vida? de horror oculto sob formas pacíficas e rotineiras de convivência?

A resposta não é aventada por ninguém. Findo o romance, a problemática se fecha em si mesma e a estrutura narrativa coerentemente se fecha em círculo: a cena inicial é repetida ipsis literis no final, embora em circunstâncias diferentes; e a frase que abre o romance («Nunca se sabe o princípio de nada.») é também a que o encerra (... nunca se sabe o princípio de nada.»). A dúvida, o não conhecimento do sentido último da vida, do mundo, do destino humano e a consciência da Palavra como possível instauradora do Conhecimento almejado convergem para a problemática central do romance (como o é também da Geração 60).

Mas apesar dessa perplexidade e desse desconhecimento em relação à verdade última das coisas, o homem continua em busca da resposta, com a certeza (ou a esperança?) de que a sua palavra reordenará o caos em que o mundo afundou; e que o eu (embora fraco, derrotado, efêmero, mas consciente de si e do outro) é o elo vital que responde pela construção da Vida, da História e, inclusive, pela existência de Deus.

...no mundo escuro

um velho deus procuro
ainda imaturo
e que estaria em mim.

É essa, a obstinada busca (do Eu, do Outro e de Deus através da Palavra) que foi encetada pelos poetas da chamada Geração 60, e que, sob mil formas, prossegue até hoje, como nos prova a poesia e a ficção do piauiense Francisco Miguel de Moura, nestes trinta anos de corpo-a-corpo com a Palavra...


Foto acima: Nelly Novaes Coelho, em sua biblioteca,
São Paulo, 18/12/1995.


____________________________________
NOTAS:
1. Poesia: Areias (1966), Pedra em Sobressalto (1974), Universo das Águas (1979), Bar Carnaúba (1983), Quinteto em Mi (m) (1986) e Sonetos da Paixão (1988).
Ficção: Os Estigmas (1984), Eu e meu Amigo Charles Brown (1986), Laços de Poder (1991).
Ensaio: Linguagem e Comunicação (1972) e A Poesia Social de Castro Alves (1979).
2. Nelly Novaes Coelho. Carlos Nejar e a Geração 60. SP, Edições Quíron, 1971.
3. Pedro Lyra. Sincretismos - A Poesia da Geração 60. (Colab. Verônica Aragão.
RJ, Topbooks/Fundação Cultural de Fortaleza/Fundação Rioarte, 1995. (Em uma alentada introdução (164 pp.) o crítico analisa minuciosamente as coordenadas em que se apoiou para estabelecer a área abrangida pela poesia dos anos 50/60, como pertencentes a uma «geração etária», nomeada «geração 60».
____________
*Francisco Miguel de Moura, poeta brasileiro, autor de 32 livros (entre os quais se encontram romances, contos, crônicas e crítica literária, Mora em Teresina, Piauí - Brasil. E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br

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