- NÃO CELEBRO ESSE NATAL
- Paschoal Motta
- Não precisei ler, nem estudar, nem perguntar para me dar conta de incoerências na celebração do Natal de Jesus Cristo, essa, digamos, orgia de vendição, compração, comilança e bebedeira por celebrantes perdidos da tradição histórico-religiosa do 25 de dezembro aqui, ali e acolá pelo Planeta Terra.
- Fui-me dando conta disso e me acoitando atrás de um escudo, numa recordação, cada vez mais funda, das preparações do Natal de Jesus Cristo, ora anonimamente crucificado e abandonado pelo desvario de muitos.
- Não celebro Natal, esse desses. Sou cristão pelo meu admirar dele, Cristo, pelas lições que sempre busco nas suas Boas Novas. Ele, um cara nascido numa pequena cidade de um pequeno país do Oriente Médio, um sem beira nem eira, falando uma língua difícil, mesmo assim, sua mensagem parabólica retumbou nos seus dias. Mesmo sendo os tempos ruços sob o tacão do todo-poderoso Império Romano. E ecou mundo afora...
- Se tenho o Nazareno como amigo, companheiro e orientador de comportamentos humanísticos, no ético e no lógico, não o compreendo como uma divindade. Um homem raro, sim, como Buda e alguns mais que não ainda conheço. Esses, como raros, tentaram melhorar a espécie humana.
- Cristo também atende por Salvador. Rende milhões e milhões de denários, negociado por milhares e milhares de Judas, que não pagam direitos autorais ao badaladíssimo personagem!
- Principalmente por usarem e abusarem do nome dele em vão.
- Ah, se o Filho do Homem fosse iroso e vingativo que nem o Deus de Moisés... Mas, o Cordeiro de Deus veio nos trazer a paz e a harmonia com as demais formas de vida...
- Mas que nada... O Poeta Castro Alves, diante das atrocidades cometidas com os escravos, já bramou:“Cristo, embalde morreste sobre um monte / o teu sangue não lavou de minha fronte / a mancha original...”
- Da minha infância, ficaram lembranças das mais caras a este confundido coração: no preparo do Natal de Jesus, desde a busca de areia branca e limo, em cortes de pedra da Estrada de Ferro; da compra e feitura de pequenas casas de cartolina e o demais por Mamãe, minhas irmãs e irmãos.
- Não me recordo de onde saía o pó de pedra para colar com grude de farinha de trigo num pedaço de papel grosso para a indefectível gruta, onde, até o Dia de Reis, ficava o Menino Jesus, deitadinho numa manjedourinha, rodeadinho por sua mãe Nossa Senhora, o pai São José, um boizinho, um burrinho, estáticos, de vigia e guarda de gesso modulado.
- Com bafo invisível, os bichos ao redor espantavam o frio das perninhas e bracinhos de fora do recém-nascido num cocho cheio de capim. Da gruta até a última casinha da única rua de um lugarejo inventado, pessoas e bichos de barro davam vida ao cenário fantástico num chão branco de calcário. Tudo guarnecido por uma cinta verde de arroz crescendo em latas vazias de sardinha. Mais difícil era recortar uma estrela de cauda imensa em papel prateado, ela recurvada, do infinito para a entrada da gruta...
- Hoje repenso: Quem ia se preocupar, em observando, que a manjedoura estava num lugar não costumeiro dela, isto é, dentro de um curral, menos na entrada duma gruta. Ia, sim, simplesmente quebrar o encanto de nossas ilusões.
- Ah... e os Três Reis Magos!?
- De debaixo da manjedoura até a beira do Presépio, uma fita de cetim vermelho, ou azul, para beijar a distância o Menino. No meio daquele caminho, um pequeno pires para espórtulas cuja finalidade ficou perdida naqueles encantos.
- Que de mergulho no maravilhoso, impossível de palavras.
- A construção desse cenário, que enfeitava a modesta sala de visitas, era amparada por tábuas, ou uma porta escamoteada de suas dobradiças e deitada sobre dois cavaletes improvisados.
- De tudo e mais aqui não recordado, resta, na saudade, o perfume dos verdes do limo, do arroz brotando nas latinhas, da minúscula candeia velando um quase nada de luz o ambiente... E a infindável reza do terço, inteiramente imprópria para um menino querendo subir para os dez anos? Naquela hora de relógio, ele não podia se isolar nos sonhos sobre sonhos debaixo do aconchego da armação novidadeira de emoções, ocultado por uma cortina de chita estampada. Em último caso, para compor o Presépio, ainda acudia uma coberta marca São Vicente, aquela de pobre se rebuçar do frio em cima dum catre de bambu.
- Meia-noite, Missa do Galo para os adultos.
- Na manhã de 25, pulava da cama, o mais cedo possível, para conferir o presente, pedido a Papai Noel e ao Menino Jesus, sobre um pé de sapato atrás da porta da sala.
- Lá fora na rua, já buzinas, já apitos soprados, já espoletas estalam em revólver de alumínio, já carrinhos de corda, velocípedes em disparada, poucos, porém; bolas de borracha chutadas a torto e a direito; algazarras... e os moleques de rua, os meninos mais pobres que nós, admirando aquilo tudo e sem compreender porque Papai Noel tinha esquecido deles...
- Os doces de limão em calda. A rabanada... O queijo encomendado da roça... O coco vindo da venda, esquentado no fogão para se soltar dentro da casca, quebrar a casca, retirar a polpa endurecida e branca, raspar ela para sair a película escura, ralar e compor doces de e com coco ralado; o arroz-doce com canela moída por cima...
- O amendoim torrado para o pé-de-moleque... O cheiro do limão ralando, a cidra, o descascar o amendoim, torrar, e o cheiro daquilo misturado nos dias esperançosos de dezembro, uma sinfonia de sensações...
- Os presentes deste presente, do mais simples ao mais estapafúrdio, nos são empurrados goela adentro, digo, bolso; digo cartão bancário adentro, por graça glória da tevê, do rádio e meios impressos. E o mais, nos bate à porta pronto e embalado sem qualquer cerimonial de iniciação emotiva.
- E para cerrar a cortina da tragicomédia, iremos de pernil, churrasco, cabrito assado, peru recheado, frango defumado, como de praxe, para rega-bofes bem regados a cachaça, vinho, uísque, cerveja... e outros embriagantes recursos de felicidade imediata.
- Uns sabem, outros não sabem qual o homenageado nessas festanças, matando e comendo as vítimas para celebrar o nascimento do Menino Precioso.
- As mais recentes gerações desconhecem o nome dele, pois na enxurrada de mensagens repetitivas e insossas de Feliz Natal, o Ilustre é desconhecido...
- Sons eletrônicos em altos volumes impedirão nossa conversa sobre essas incoerências, ou mesmo as de jogar fora...
- E, assim, vamos que vamos, cambaleando na corda bamba do dia-a-dia, esquecidos, consumidos, distanciados um do outro, mas felizes pra dedéu...
- Tô fora disso! Não celebro esse natal.
- E você, caro leitor cristão?
- Paschoal Mott. Crônica recebida por e-mail
- SPF, 23-12-2014
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
NÃO CELEBRO ESSE NATAL
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Um comentário:
Olá Chico Miguel! Passando para te cumprimentar e desejar um Excelente Natal e que o ano de 2015 seja de muita saúde, paz, amor, prosperidade e repleto de realizações para ti e para os teus. Temos um recadinho para o velho Noel. Espero que gostes. Rsrs.
Quanto ao post, Belíssima crônica do Paschoal Motta! Ótima escolha. Parabéns!
Abraços,
Furtado.
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