Campomizzi Filho*
escreveu:
Sobre UNIVERSO DAS ÁGUAS
Desde algum tempo estamos à espera desse novo pronunciamento de FRANCISCO MIGUEL DE MOURA. O moço piauiense, de palavra amiga e de gestos mansos, assumiu um compromisso para conosco e não poderia faltar à dívida. É que, bom poeta, com um punhado de versos que vai compondo ao sabor dos ventos e à necessidade de comunicar-se, não lhe é lícito reter por mais tempo novo contato com o leitor.
Vivendo na província, mantendo ali a chama do entusiasmo pelas coisas do espírito e vencendo toda a sorte de limitações, ressoa longe seu lirismo, eis que fortalecido pela oportunidade da canção e pela seriedade da estrofe. Usa o termo certo. Não teme os tropeços. Está engajado numa luta e vai ao fim através dos meios que tem às mãos. Desincumbe-se de sua tarefa e nos fala deste hoje, difícil e áspero, atritante e pressionado, que é decerto a antevisão de uma aurora.
Nem tudo está perdido e o sonho é a nossa tábua de salvação, velhos instrumentos trazendo-nos aos ouvidos notícia da bem-amada de envolta com as dores do mundo. Não nos desvencilhamos do agora, a luta sem destroçar os nossos horizontes e as quedas sem impedir a nossa crença. Venceremos a jornada e atingiremos o objetivo válido, porque
“o amor constrói-se dia e noite por inteiro”.
Não será fragmentada a nossa confiança nos olhos sonhadores que, para o todo e sempre, impelem-nos para todos os destinos. Essa fidelidade, que se repete ao longo dos diferentes lustros, fortalece-nos, “em penitência e trabalho”.
A arrancada como afirmação maior é que “o poeta não perde a memória nem desconhece seu povo.”
Quando lá fora há um certo desânimo, quando tudo conspira contra a permanência de uma escala de valores e quando, num sinal dos tempos, “o remédio não será liberar as estradas”.
O poema nos conforta e nos estimula. No momento crucial há que se pedir perdão, porque velhos escritos estabelecem formas e indicam elos, o forte prevalecendo-se de prerrogativas e nós outros, em submissão, prontos a cumprir tarefas e a permanecer “sem alcance do horizonte”.
O momento é de transição. As mudanças são palpáveis. Os dias correm céleres. Os que não acompanham a avalanche se marginalizam. A corrida não nos permite parar para pensar. Com isso, enriquecemo-nos de que há todo um instrumental convocando-nos para a esperança, alimentando a fé e exigindo que nossos joelhos se dobrem na perspectiva da salvação.
“A morte só incomoda se está nua na avenida”
Tédio e cansaço trazendo indiferença e raiva e empenho como prevalência maior da problemática de hoje. No mais, as águas nos redimirão, seus “escuros encantos” como um chamamento maior e irremediável. O rio da vida vai ter ao mar da morte, só está identificando os homens na própria angústia de viver. Abanando os braços, o poeta vai de aldeia em aldeia, palmilhando diversificados caminhos. Leva a cada população um pouco de ternura. Mas não consegue, de maneira alguma, esconder:
“Pelos becos e estradas, a alma aos pedaços”.
É que, feito deste mesmo barro de todos nós pecadores degradados, sobe-lhe à cabeça a penúria que tem sido a bandeira do desespero.
“A paixões envelhecem.”
Tragado pela sanha de uma sociedade de consumo, sabe que suas definições são restritas e poucos serão os privilegiados que lhe entendem a oração. Há uma divindade criadora de todas as coisas e que preside as encruzilhadas dos continentes. A sua, entretanto, é uma presença fluida, no universo das águas, rios e lagos, fontes e oceanos, furos e igarapés, enchentes e devastações, tudo como maldição dos que, esquecidos, conspurcados, vividos, suados, comidos pelo poder grande, assim mesmo insistem em viver.
“Seu tempo se desfaz no vento”.
E a aragem que vem do sul, mansa e fresca, não tem outra conotação que aquela mesma da visão acre do desvalor e da prepotência.
“Qual lavrador sem enxada ou pregador sem verbo” o poeta insiste nos seus desígnios. Não pode alegrar os grupos e se enfileirar entre os saltimbancos. Já não há lugar para os sorrisos e muito menos para os serões agradáveis ao pé do fogo. Todos estamos amedrontados. A ameaça está no próprio ar que respiramos.
“Só os que mandam morrem duas vezes”
É melhor que nos resguardemos e que esperemos. A madrugada virá, mais cedo ou mais tarde, mas trazendo consigo alegrias e virtudes, restaurado o reino e recolocados na parede os quadros que vamos construindo em torno do definitivo que não se imola.
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA é poeta de raro compromisso: ama seu povo e lhe persegue os riscos. Não se intimida. Não se compunge. Enfrenta. Borboleta no campo cheiroso de chuva e mato, sob um céu de recordação, prossegue nas suas andanças, e nos quedamos diante da seriedade de seu estro. Entrega-nos, em bela apresentação gráfica do Grupo Teresina, esse seu “UNIVERSO DAS ÁGUAS”. São 125 páginas numa coletânea de alto nível. O tom que lhe domina o verso é esse mesmo do compromisso com o nosso mundo, conhecendo os meandros de uma conspiração que tenta impedir a validade da poesia. Insurge-se, portanto, nessa denúncia, tentando abrir perspectivas maiores para o hemisfério da canção que preparará o mundo novo que será a conquista maior de todos nós na reformulação dos conceitos de fraternidade. A ninguém é lícito agora o raciocínio em termos de pessoal e de egoísmo: Fala mais alto nossa obrigação para com o grupo. “Nenhum homem é uma ilha.”
O “universo das águas” nos reúne, que elas aí estão, linfa amenizando nossas canseiras, indicação de rumos para novas descobertas e acima de tudo a recomposição desse ideal maior de unir os homens de boa vontade em torno do bem comum: a humanidade entrelaçada em paz e amor.
Um tanto amarga agora, a poesia de FRANCISCO MIGUEL DE MOURA nesse seu “UNIVERSO DAS ÁGUAS” nos atinge. Cumpre seu objetivo. O poeta estava a nos dever essa coletânea. Mas não pode parar. Continua com a dívida e dele esperamos muito mais ainda na escalada vitoriosa de sua carreira. Vivendo na província, tem sido capaz de ultrapassar seus lindes, de se fazer entendido aqui e alhures. É poeta e dos bons. Seu nome se situa entre as figuras mais altas da atual geração. Se seu verso é amargo, não lhe cabe culpa alguma, que apenas transpõe para sua estrofe as nossas que são as dores do mundo. E nisso está a virtude maior do poeta: um homem do nosso tempo e que não desprende da terra os próprios pés.
(Publicado na “FOLHA DO POVO”, de Ubá – MG, 12 de maio de 1979).
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*José C. F. Campomizzi Filho, jornalista, cronista, crítico literário e historiador mineiro.
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