quarta-feira, 3 de março de 2010

EDUARDO MAFFEI - BAR CARNAÚBA


CONVERSA DE BAR SOBRE POESIA

Eduardo Maffei*


Há tempos, escrevendo sobre ele, num desses repentes que saltam das máquinas qual duendes, titulei Francisco Miguel de Moura, como Chico, o poeta do Piauí. Não que ele seja algum Homero que, através de metempsicoses sucessivas, houvesse nascido nesse Estado em mau estado. Mas por ser ele quem faz guerrilha cultural, tentando conquistar espaço para manobras num campo minado pela indiferença e prostituição e pelas novelas, sucedâneas dos antigos folhetins, e como eles também alienantes. Embora a boa poesia represente a quantidade libertária transformada em qualidade, os poetas são vistos com desdém num mundo no qual a simples sobrevivência transformou-se numa complicada operação. As manifestações superiores do espírito das quais a chamada civilização tanto se orgulha, especialmente a poesia, estão-se tornando, à mingua do tempo, pela massa de problemas e diversionismo intencional de acesso cada vez mais difícil. E ser poeta, em tais ambientes e tempo, é ser, além de guerrilheiro, idealistas e teimoso. Qualidades, aliás, dos guerrilheiros...

Somos o produto final das eras geológicas. Da última, a cenozóica, cujo derradeiro período foi o quaternário no qual o plistocênico é a época final. Nela, diferenciando-se do antropóide de onde proviera, pelo trabalho que desenvolveu a lógica do conhecimento, a inteligência, aparecemos como seres humanos. O homem, enfim.

Vínhamos da Natureza sentindo nela nossa mãe. Sem imaginar que no século XVII, um “medecin três illustre”, segundo Leibniz, seu parceiro de inteligência, sefardim de origem, metafísico do racionalismo – para empregarmos uma expressão poética – pelo pensamento, Spinoza de nome, filósofo excepcional, afirmaria que Deus, a Substância e a Natureza regem o Universo. Por esse tempo, a abominável besta da Inquisição andava à solta e ele, ateu, tentou mascarar sua convicção materialista pela qual a Natureza era a origem de todas as coisas.

Quando o homem se deu conta que era o centro do mundo, passou a indagar o sentido de tal, procurando interpretá-lo e representá-lo. Foi então que a mãe Natureza passou a ser cultuada totemicamente através de uma pré-filosofia bronca e incipiente, mas filosofia. A primeira representação deve ter sido uma escultura: a de um totem. E, no ocaso do plistocênico, surgiu o paleolítico em cujo fim o troglodita fez desenhos e pinturas rupestres nas paredes das cavernas que o abrigavam, criando até hoje a notável – e por que não moderna? – arte paleolítica. Por esse tempo, por certo, o ouvido de nossos ancestrais bebera o gorjeio dos pássaros, o coaxar dos sapos, o zumbido dos insetos, a pastoral das florestas e as declarações de amor – convite à comunhão sexual – como necessidade do espírito para a satisfação biológica. Disso e talvez pela ingestão de vegetais alucinógenos que nos levam ao mundo dos sonhos, deve ter brotado o primeiro poeta à espera da descoberta da escrita. O peiote é o cogumelo sagrado – até hoje – de certas tribos mexicanas e norte-americanas. Seu principal alcalóide, a mescalina, produziu, pela ingestão, devaneios fantásticos no genial escritor Aldous Huxley. Sua colheita representa um milenar rito penoso entre os Huilchol e Tarahumare no México, e os Kiowa, Comanche e Apache ianques. A cerimônia de ingestão, sobretudo entre os Huilchol que conservaram a pureza da tradição, é movimentada pelo canto “Penas azuis”, que evoca um mito, enquanto o cacto maravilhoso os faz desprender para o mundo poético dos sonhos, que persistem por muitos anos. Esse ritual é sagrado. E dessa conjunção entre o existente e o sobrenatural, talvez, em tempos imemoriais, tenha surgido o aedo. Que deve – na época do culto à Natureza – por certo, se ter antecipado à estrofes de Guerra Junqueiro, o nunca assaz tão lembrado vate lusitano:

“Há mais Deus com certeza
Nos cardos de um rochedo nu
Que nessa Bíblia antiga...
O Natureza,
A única Bíblia és tu!”

Quando a filosofia desabrochou como ciência, pensadores notáveis como Empédocles e Parmênides transmitiram seus conhecimentos através de poemas, dos quais Hexagonal, do último, continua atual e, pelo visto será eterno, pelo menos enquanto não chegue a primavera atômica que o exterminará, juntamente com os poetas, filósofos e a humanidade que surgiu no fim do plistocênico como obra da Natureza e será destruída pelo engenho humano. Aristóteles, sem o qual o pensamento continuaria castrado até hoje, disse, numa expressão miúda, um universo de sabedoria:

“A poesia é mais verdadeira que a História.”

Realmente, por ela, só a verdade daquilo que o espírito percebe é comunicada, enquanto a história a possui a possui a cada momento de acordo com os interesses oficiais. Há, por isso, por amor ao homem que cultuou a Natureza, por respeito aos filósofos, por respeito aos artistas e, por respeito à verdade, que respeitar os poetas. Inclusive Chico, o poeta do Piauí.
Para Gabriel d’Anuzzio – e para Câmara Cascudo também – qualquer crendice camponesa tem tanto valor quanto as lendas homéricas cantadas pelos rapsodos. “Bar Carnaúba”, título do novo livro de versos de Chico, existiu no centro de Teresina, capital de um Estado que eu amo. Talvez porque a primeira grande reportagem sobre “Sete Cidades” publicada em revista de âmbito nacional, “O Cruzeiro” (julho de 1944), tenha sido efetuada por mim. Quando, recentemente, me apontaram a esquina em que se sediava, lembrei-me duas vezes de Paris. Porque, em 1943, quando Paulo Emílio Sales Gomes, um dos melhores companheiros que tive, entusiasmado com a beleza das mulheres tropicalmente desejadas do conventilho “Cabaré da Jerusa” – os velhos, como eu, de Teresina, por certos lembrar-se-ão dele – ele que conhecera os “moulins”, exclamou:

– “Teresina é melhor que Paris!”.

E também por causa da “Rotonde”, bar parisiense em que se reuniram, em seu tempo, Picasso, Fugita, Ilya Ehrenburg, Rivera, Chantal, Maiakovski e Hemingwey. E também Modigliani que trocava, com Libion, o dono do boteco, postais em que pintava marinhas a troco de doses de cognac. E que ele as punha fora por nem pensar que elas valeriam, mais tarde, fábulas. Contentou-se em participar dos comentários quando 24 horas depois de o pintor falecer, sua companheira suicidou-se. A diferença é que o “Moulin Rouge” e a “Rotonde” continuam a existir. O “Castelo de Jerusa” nem mais à memória pertence. E o “Bar Carnaúba” está ressuscitando pelos versos de um poeta.

Em todas as cidades do mundo houve seu bar célebre. Foi em tavernas que Thackeray, Disraeli, George Elliot e Dickens (e, na “George”, Stanford, Walter Scott) que ancoraram, durante muitas horas, os barcos de suas vidas. Certa mulher, que fez história por sua enfeitiçada beleza, nascida em 1761, de família humilde, Emma de nome, tornou-se amante de Nelson, o vencedor das batalhas de Abukir e Trafalgar que deram novos contornos aos destinos do mundo, de 1798 a 1805, do que resultou uma filha em 1801. Mais tarde, tornou-se amante de Sir William Hamilton, embaixador inglês em Nápoles, de quem seria esposa, quando o pintor da feminilidade, Romney, a retratou, numa obra célebre de museu. Morreu como Lady em 1815. Foi numa taverna, em Buford Bridge, que ela e o almirante encontraram-se pela última vez na troca de adeus. Foi na “Closerie de Lilás” que Scott Fitzgerald leu os originais de Great Gatsby para Hemingwey e o “Café de Fleurs” foi ponto diário de Sartre e Simone de Beauvoir.

Da mesma forma que Van Gogh já se plantara como inovador ao dar mais valor à cor que ao desenho em pintura, tempos depois Baudelaire, alternando o mais corrompido e perverso para uma sociedade também corrompida e perversa quem sua “normalidade” corrupta e perversa os considera anormais, com o mais bizarramente natural, revelando uma refinadíssima sensibilidade fundamentada na estética parnasiana, lançou as pontes do Simbolismo, cuja coluna mestra é “Correspondências”, soneto magistral:

“A natureza é um templo onde pilares que aí vivem
Pronunciam às vezes confusas palavras;
O homem aí passa através de florestas de símbolos
Que o observam com esgares familiares”.

O que a história não conta é se o escreveu em delírio alucinatório que o devolveu à Natureza ou com a mesma naturalidade que o fazia colorir seus cabelos de verde, pelo que a sociedade esquizofrênica o caracterizava como um... esquizofrênico. Ele, em Les Paradis Artificiels, descreva a alucinação quando, juntamente a um grupo de intelectuais, reunidos no bar do “Hotel Primodiam”, em Paris, consumiam confeitos de haxixe, sob cujo efeito escreveu inebriantes poesias que nos devolvem à Natureza que os versos proporcionam.

Entre nós, quanta poesia – sobretudo o poema épico de Canudos, gravado como afresco numa das paredes de nossa história por Antônio Conselheiro e seus companheiros – não deve ter brotado, embora ignorada, pela ingestão das “juremas prediletas dos caboclos – o seu haschisch capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem”, segundo Euclides.
Na quina das ruas do Imperador e 1º de Março, no Recife, houve, durante mais de duas décadas, sob oitizeiros, um cenáculo, inaugurado nos primeiros anos 20 pelo jornalista Osório Borba que ali fazia ponto a caminho da redação do “Diário de Pernambuco”, logo seguido pelos poetas Ascenso Ferreira e Benedito Monteiro, que acontecia todas as noites, ao redor das últimas mesas da rua do Imperador, altares sacros cujas missas político-culturais, no tempo que freqüentei, eram rezadas pela voz ciciada de Joaquim Cardoso contraponteada pelo vozeirão de Ascenso e pela verve exuberante de Câmara Cascudo que, em suas viagens, fazia escala obrigatória ali. Tive a felicidade – levado inicialmente por Eustáquio Duarte – durante todo 1939 e começo de 40 de, menos que beber bebidas de garrafas, beber palavras que deram vida a pensamentos e companheirismo. O café chamava-se Continental, nome que Recife e o Brasil inteiro ignoravam. Era para os intelectuais a “esquina da Lafaiete”, nome de crisma pelo qual se tornou conhecido o café, porque, mais adiante, na Imperador, existia uma tabacaria da Fábrica Lafaiete nos tempos em que o hábito do fumo, erva lustral e exorcista, originária de nossa América, não havia sido monopolizado e adulterado por uma multinacional britânica. Foi ali que, com voz de baixo, Ascenso recitara trechos de “O Sertão” e de “Catimbó” e, ao se despedir, declamava: “Adeus, eu voltarei ao sol da primavera”, soneto que, mais tarde, num ensaio que fez aos 50 anos do poeta em “Para Todos”, então dirigido por Jorge Amado, Souza Barros reproduziu. Só apanhei ali o rabo de Ascenso que se tornou “habitué” do bar do Grande Hotel onde eu morava. Acordava-me depois da meia-noite para que lhe assinasse vales do seu uísque. Noel Nutels, mais tarde, me disse que também marchara da mesma forma, o sono interrompido, com o que Ascenso bebia. Tanto eu, como ele, fizemos mote, também num bar, o Metrópole, daqui de São Paulo, sobre aquela muita felicidade que o poeta por tão pouco nos proporcionara como recordação. O Lafaiete foi, de todos os que freqüentei, o mais importante. E note-se: papeei, papei e bebi, de Porto Alegre a Belém, em muitos, também pontos de encontro de intelectuais. Se tivesse, dessa freqüência, de sofrer de algo, estaria afônico, com úlcera gástrica ou teria morrido por evaporação. Portanto, nada mais poético que o título de um bar em homenagem aos momentos que amalgamaram amizades e despertaram idéias.

Há em geometria uma figuração chamada épura, projeção, no plano de uma figura no espaço. O livro de Chico é uma épura de tudo aquilo que ele captou, transformando em verso para que merecesse o “tanto no simples como no profundo / em terras do Piauí que muito amamos / és cria, criador e criatura”, de Hardi Filho, o prefacista. Há uma ciência de saudade nos versos da pág. 15: “Bar Carnaúba de ontem, ainda te bebo na lembrança, / liberdade curtida: – Você não caiu.” Mesa não é lugar de comer e beber; é posto de observação e êxedra de conversa para a qual a comida e a bebida são pretextos. E sem liberdade não há conversa livre. “Ordem e Progresso” é levantamento das coordenadas em que se situa a terra piauiense, em versos. Em “Meu outro rio”, há “No verão, branco banco de areia / na noite, um só mar de lua cheia”, quase um eco de Catulo. Em “Mar e cantar e morte”, uma receita sublime: “Quero morrer de amor / como os santos vivem.” Se a única medida de amar é amar sem medida, essa aspiração é digna de versos de “Saudade”: “Coisa passada. E passou / por fora e fica por dentro”. “Cantiga para mamãe” é um convite à inveja de outras mães que não tiveram um filho poeta.francisco miguel de moura (chico miguel) - 40 anos de poesia

Ignoro se quando Chico freqüentava o bar Carnaúba já se casara com Mécia, sua mulher desde que nasceu e, mais tarde e fortuitamente, por cartório e altar que jamais sagraram qualquer amor. Em “Noturno para minha mulher” há um sabor de felicidade daqueles casais que a conseguem através da tolerância mútua dos defeitos que adquirem o caráter de qualidades. Pergunta-se, depois de lê-lo: – Mécia permitia que Chico saísse sozinho às noturnas para o bar Carnaúba? Mesmo que fosse para fazer noturnos (ou noitadas...)? “Vista de Timon” é uma beleza de poesia. Versos como “da fome que te nutre” e “em mulheres que se vendem e se penteiam”, “das famílias apodrecidas no mando” e “Caço um jeito covarde de te amar, Teresa” valem um vate em qualquer banco de cultura pela antítese poética de uma brutal realidade nacional, a fome, e o social do comércio do sexo pelas suas honestas mercadoras que, pós-pílula, sofrem desleal concorrência. Nada poética...
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*Eduardo Maffei, médico, jornalista, romancista, historiador. Ativista político, militava na esquerda, antigo PC, São Paulo, Brasil. Seu último livro foi “A Batalha da Praça da Sé”, publicado em vida. Faleceu no final do sec. XX.

(Artigo/ensaio publicado no “Diário Oficial – Leitura”, São Paulo (SP), 4 (40), set. 1985.

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