DE LEITORES E LEITURAS - CRÔNICA
Francisco Miguel de Moura*
Estava eu, tranquilamente, na sala de espera de uma clínica ortopédica onde minha mulher faz tratamento de seqüelas de uma cirurgia no braço direito, esperando que ela fosse atendida. Como demorasse, peguei “O Grande Mentecapto”, de Fernando Sabino, que havia começado a ler há dias.
Entre as pessoas que entravam e saíram continuamente, ouvi que a senhora X, portando um pequeno livro, puxava conversa com a senhora Y. Pelo visto e ouvido, cientifiquei-me de que se tratava de gente de família abastada e de conceito na cidade. Não entendi bem foi o que a senhora X disse à senhora Y.
Continuei minha leitura desse D. Quixote caboclo. As façanhas do herói Viramundo ora nos enchem de riso e simpatia, ora nos atropelam com casos escabrosos e dignos mesmo de um mentecapto. Dignos de nossa piedade.
“Será que sou assim, será que fui assim?” – o leitor vai-se perguntando, de vez em quando, por causa da semelhança com a vida real em algumas situações.
Jorge Amado diz na orelha que o herói Viramundo é o tipo do brasileiro: sofre e teima em vencer as maiores barreiras do meio social e mesmo do meio físico onde nasceu, por isto é um homem perdido, incompleto, ficando a parecer um abestado, mas é um triste, um inocente sonhador e sofredor.
Cansado, encostei o livro na cadeira ao lado e fiquei a descansar a vista, comparando as mulheres jovens com as velhas que por elas eram conduzidas, olhando os pacientes em suas cadeiras de roda ou escanchados em muletas de vários tipos. Eis que lá vinha a mulher X no meu rumo. Frente a frente, sem dar bom dia nem dizer “como vai?” e me pergunta de chofre já afirmando:
- O senhor gosta muito de ler...
- Gosto, respondi. A senhora está vendo.
- Já conhece este livro? emenda.
Era um pequeno livro comum, de capa pouco convidativa, sem arte, de abas moles, que, salvo engano, me pareceu ser uma interpretação de Lampião, o Rei do Cangaço.
- Não, senhora.
- É bom, pequeno, se lê com facilidade, é de minha filha. Quer comprá-lo?
- Não, muito obrigado. Mudei-me agora para um apartamento, dei meus livros todos a uma biblioteca do interior, fiquei apenas com alguns livros. Este é de minha filha, quando cursava a 7ª. Série. Leitura paradidática.
- O senhor não gosta de ler?
- Gosto, e daí?
Calou-se. E ficou olhando meio de esguelha o livro que eu sustinha, agora como que por proteção:
- É, o povo hoje não lê mesmo, é difícil.
- É verdade.
- E quando lê, só lê isto aí... – Fez uma cara de nojo, tentando decifrar o nome de Fernando Sabino, mas parece que não conseguia.
- Mas eu leio bons livros – falei. Este é excelente – um clássico da literatura brasileira contemporânea.
Desalentada, ela disse que tinha 78 anos de idade, que o livro iniciava com o pensamento de um grande escritor francês e encerrava com uma oração a N. S. da Conceição... E, de outra forma, a obra que estava oferecendo, podia ser encontrada também na livraria Z, do River Shoping.
Com medo de que ela me oferecesse, de graça, o livro, e para não ter o desprazer de negar recebê-lo, eu acrescentei:
- O.K., minha senhora. Eu também escrevo, já publiquei mais de 30 livros e sei disto. Os meus estão nas livrarias.
Dali em diante, esqueci o livro e fiquei a meditar sobre a situação do escritor brasileiro: Que situação! Ter que vender o produto de sua criação aos colegas é, no mínimo, deselegante. E este diálogo real e corriqueiro diz muito a respeito da situação da literatura no Brasil, do seu descontrole e do desrespeito a que está submetida. Não sei se o livro dela (ou da filha) era literatura (pelo visto, não). Mas, isto pouco importa. O que se constata é que há muitos escritores sem editor, há muitas livrarias que não se interessam por literatura – ao contrário, detestam. Não há crítica. Não há como se ter uma literatura boa ou acreditada, já não digo excelente.
Em sendo assim, os leitores fogem dos livros. Não querem nem de graça, pois a prática da vida social de cada dia mostra que literatura é uma tolice, cada um faz da forma que quer, não precisa ter conhecimento nem estudo, nem inteligência, nem pendor, é só querer: conchava quatro ou cinco palavras num pensamento ralo, corriqueiro sobre amor, paixão, desilusão, crença em Deus e nos santos, folclorizando, etc. E daí é escritor. E sai por aí pensando que é um clássico. A situação é deplorável, para nós que acreditamos na força transformadora de um texto, quando lido com atenção, paciência e algum sentimento maior que as tolices comuns do que possam traduzir a frase: “Eu te amo!” Para fazer isto, “criar isto”, já há centenas e milhares de compositores populares. Basta de besteira, melhor calar, não comprar, não ler.
Adeus, senhora X – deverá ter dito a senhora Y. – Eu tenho mais o que fazer. E, chegando a casa, meteu a venta no computador e comeu Orkut e Facebook, até o fim do dia, depois se amarrou na tevê, de Faustão a Sílvio Santos, da novela A até a novela Z.
Sem críticos, sem editores, sem distribuidores, sem leitores (de boa cepa) não há arte literária que agüente. E o mundo vai-se sepultando na escuridão da ignorância e na morte do Mal de Alzwheimm.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina, PI.
6 comentários:
Querido Chico em tempos de hipermodernidade, em que o estilo "fast food" comanda, constatamos o muito que estamos perdendo e pior, o muito que estamos perdendo sem nos preocuparmos minimamente que seja, uma vez que pensar denota tempo e zelo, artigos de luxo no corre-corre da vida atual.
Muito bem traçada, como sempre, tua crítica.
Um grande bj desta leitora que muito te admira.
Bela crítica, como sempre ne meu amigo?!
ADORO LER SEUS POSTS: PENA QUE DEMORA TANTO ESCREVER:
beijos
Os tempos podem passar, as modernidades podem vir, pois sempre vieram, mas eu não dispenso a leitura de bons livros...
Adoro crônicas assim, leves e que descrevem de maneira ainda mais suaves as agruras do cotidiano.
Um abraço
É, meu Amigo, já nos dizia Monteiro Lobato que "Um país se faz com homens e livros"... ao que acrescento sujeitos e leitores, porque nem sempre o produto que resulta de sua matriz se faz verdadeiro...
Tanto para crescermos, tanto para trocarmos, tantos meios de comunicação em expansão, mas se descuidarmos tudo vira lenda.
Gosto de tua reflexão, gosto do alerta que aqui encontro.
Um beijo e seguimos!!!
Carmen.
Malu,
grato por suas palavras de sabedoria. Fui ao su blog e achei muito bom, deixando comentário no meio de dezenas outras. Cliquei em "seguir". É bom ter o link.
abraços fraternos
francisco miguel de moura
Bela crônica como sempre.
Vim desejar-lhe uma feliz semana
Abraços
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