quinta-feira, 4 de novembro de 2010

TARDANÇA

TARDANÇA
“A verdade se tece no costurar das horas, no sal dividido e mastigado”

Teresa Magalhães*

João e Maria uniram-se na época das águas. O céu transbordava as cisternas. Moldado no campo, ele conheceu as ranhuras da terra, a tardança da sementeira para chegar à colheita. Pulsava em sintonia pausada com o solo. Apaziguada, ela o seguiu. Estaria ao lado do marido, na construção do tempo macio e do amor tramado na sutileza. A casa avarandada ficava na elevação do terreno, à beira do longo rio, que dilatava o olhar. Silencioso, largo, profundo. Frisado à flor da água, rebrilhava ao pôr-do-sol, bordando a paisagem de ouro e calma. Nos primeiros meses, o vento frio penteou as campinas e inventou abraços tépidos. Era a hora aveludada dos sussurros e da lasciva embriaguez. Derramados em lava fluida, fundiam-se.

O relógio correu no urgente galope da felicidade. Voraz e veloz. Maria acolchoava a casa branca com cores quentes, como se pudesse capturar o instante. Serena e musical, alheada dos medos. Mas a verdade se tece no costurar das horas, no sal dividido e mastigado. Antes das mil e uma noites, João foi se esquisitando. A mulher alongava o olhar, a fim de espiar os inalcançáveis olhos. Parecia-lhe que amarelavam e vertiam lágrimas, na hora da refeição noturna. A palavra elíptica. Será melancolia? Na boca, não cabiam mais os beijos. Rasgaram-se os lábios até a altura das orelhas, cristalizando um sorriso sempre escancarado a desentoar com a água escorrida pelo rosto.


Ele saía rebuçado pelo negrume das horas. Voltava quando as sombras cobriam o sol. O quarto, sem João, era um deserto, o escuro silêncio zumbindo nas fendas íntimas. Maria agarrava-se ao travesseiro, buscava as cobertas, no afã de urdir um lenitivo para o abandono. Oscilava entre vertigens. Sem o ruído de passos, sem a quente respiração que ninava seu sono, ancorou-se nos veludos da memória, para sustentar-se. Até que os empregados chegavam. Poderia dormir.

A casa, de interior acortinado, estribava-o nas voltas. A doçura de Maria, maculada pelo desconcerto, resistia. Na concha da pele, amavam-se ainda. Mas a aurora surgia com o repetitivo sobressalto: a ausência do companheiro. A desconfiança roubando-lhe o sossego. Teria ele outra mulher? Atormentada pela dúvida, resolveu segui-lo. Saiu protegida pela escuridão. O seu homem não foi longe, esquivava-se apenas. Escolheu um banco de areia e se deitou, esperando o sol, para jacarezar na quietude imóvel. Solitário. Ela teve a impressão de que ele vestia uma longa cauda. Boca aberta quando o sol ia alto. Nas horas de maior calor, mergulhava nas águas do rio. Permanecia submerso, durante longos períodos de tempo. A mulher freou um grito de aflição. Vai morrer afogado, meu amor! Voltou para casa, taciturna. O segredo era muito denso para suportá-lo. O enigma arrevesado de João teceu seu mutismo. Maria nunca mais cantou nem falou. Os momentos de solidão, passava-os na varanda vigiando os mistérios do rio. Às vezes, vislumbrava um tronco de árvore, inerte, deitado ao longe. Às vezes, ele desaparecia sob a tremura da superfície molhada. De certa feita, viu um enorme réptil, de patas curtas, se movendo, à margem.

O sol escaldante secou a fartura das águas. O rebrilhoso filete de rio feria os olhos do alpendre branco. Ela não podia mais vê-lo, tanta a luz. Amarrada à insólita realidade, esperava. Os braços tombados.

A soma dos meses virou as folhas do calendário. Maria resistiu à longa e erma travessia. Quieta, quieta. Até que, em incerto dia, amanheceu ao lado de um monstruoso crocodilo. Não sentiu medo. Respirou aliviada, não estava mais só. Sabia que, sob o couro brilhante e duro, escondia-se o homem que amava.

Obs: A imagem que ilustra esta postagem foi colhida no site: www.fbcu.com.br
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Teresa Magalhães é professora de Literatura e Redação, em Ribeirão Preto, SP.
À moda de Cecília Meireles, acredita que ‘ a vida só é possível reinventada’.
Começou a escrever na idade adulta, mas muito cedo conheceu as palavras de
 ficção, motivada pelo pai, que lhe apresentou autores da literatura nacional e
estrangeira.

Um comentário:

Antonio José Rodrigues disse...

O conto bucolico, Chico Miguel, encheu-me de nostalgia da paisagem piauiense. Muitas metaforas elegantemente inseridas no texto deixou-me a sonhar com uma vida no campo. Uma vida simples, sem tragedia e jacares. Abraços

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