MUITOS POETAS, POUCA PROSA E NENHUM CINEMA DE ARTE
Wanderson Lima*
Um texto que empreenda uma panorâmica artístico-cultural de Teresina deve conter um mea culpa pelas injustiças que venha a cometer e a exposição dos critérios de seleção utilizados. Assim, primeiramente, devo admitir que não é neutro, muito menos infalível, o meu discurso forçosamente generalizante. Em seguida, admito que me guio pela representatividade das obras: fruto da escolha de uma comunidade, muitas vezes à revelia do valor estético. Por fim, ressalto a ausência de nomes importantes que moram fora de Teresina e, portanto, não compõem a nossa cena cultural: Assis Brasil, Álvaro Pacheco, Afonso Ligório.
Começo pela poesia, onde a produção, pelo menos quantitativamente, é mais vigorosa. Grosso modo, existem três linhas de força: – a dos remanescentes da poesia marginal, aqui autocognominados de geração pós-69; – uma geração jovem que começou a emergir no final da década de 1990 e se reúne em torno da revista e site Amálgama; – e a dos grupos acadêmicos (e são muitas academias por aqui, embora a Academia Piauiense de Letras seja, de longe, a de maior prestígio).
Essa geração, que edita a revista Pulsar, constitui o grupo mais coeso e com o programa estético mais bem delineado. Da poesia marginal dos anos 1970 permanecem vivos nos autores dessa confraria o gosto pelo coloquial, a tematização do cotidiano, o minimalismo, o antiintelectualismo e, em alguns casos, o jogo com a visualidade, ainda que muitas vezes incipiente. Muitos autores dessa “linha de força”, ostentando o improviso e o desconhecimento da tradição poética como salvo-condutos, sucumbiram pela repetição, pelo relaxamento formal a pretexto de protesto ou de experimentalismo. Ainda assim, três poetas ciosos, que gestaram suas obras com mais paciência e consciência estética, se sobressaíram. Paulo Machado é um poeta que funde o verso contido e rico em alusões culturais de H. Dobal com memorialismo à Drummond, realizando uma espécie de crônica em versos ou reportagem poética de Teresina. Durvalino Couto é autor de um único em versos, Os Caçadores de Prosódia, súmula impressionante e irregular – cujo leitmotiv é a ironia ferina – de diversas tendências da poesia brasileira das últimas décadas: concretismo, poesia marginal, poema-processo, prosa beat, letras de músicas e até sonetos fesceninos. E, finalmente, Rubervam du Nascimento, esteticamente o mais eficaz dos três, autor de A Profissão dos Peixes e Marco Lusbel Desce ao Inferno, este último, de pendor épico, funde a postura combativa da poesia engajada ao experimentalismo das vanguardas formalistas.
No que concerne aos poetas de Amálgama – e aqui falo com um grau de isenção mínimo – não se pode exigir, ainda, realizações estéticas de envergadura (há autores como Alexandre Bacelar, que nem publicam livro). Por enquanto, o campo de ação mais efetivo da geração Amálgama tem sido na crítica, com intervenções polêmicas e releituras de autores e obras relevantes. Algumas posturas – e não características propriamente propriamente – comuns a esses autores: a tentativa de reliteralização do código literário; indissociabilidade das tarefas de criador e crítico; tentativa de desprovincialização da literatura, postura mais universalista; ceticismo, relativismo, consciência pós-utópica. Vale a pena destacar, deste clã, o trabalho poético de Ranieri Ribas em Os Cactus de Lakatus, obra singular pelo seu radicalismo lingüístico-experimental, marcado por múltiplas influências, entre elas o visualismo concretista, os neologismos à Joyce, Guimarães e Girondo e a poesia experimental de e.e.cummings. Digno de nota também é a poesia, meio neo-romântica, meio surreal de Dilson Lages, que obtém seus melhores poemas no erotismo difuso, encoberto de imagens oníricas. Cabe ressaltar, também, o trabalho de Adriano Lobão que, tendo estreado mal, subiu significativamente de produção com Entrega a Própria Lança na Rude Batalha em que Morra, cujos melhores poemas são calcados em pesquisas históricas e na colagem de versos e fragmentos, à maneira de Eliot, e refletem a leitura acurada de Gerardo Mello Mourão e João Cabral de Melo Neto.
A terceira linha de força que enumerei, a de poetas ligados a academias, apresenta como nomes mais significativos Francisco Miguel de Moura e Hardi Filho. De um modo geral – a exceção é Miguel de Moura – a poesia desta plêiade liga-se a temas tradicionais, de fundo romântico-simbolista, com a livre oscilação entre formas tradicionais (em geral, o soneto) e o verso livre. Não são poucos os poetas daqui que praticam a chamada “poesia de fim de semana” ou a “poesia como terapia”, embora não o admitam. O melhor da produção de Hardi Filho parece estar no soneto, especialmente na sua coletânea Estação 14: ele dá continuidade à tradição, tão bem fixada por Vinícius de Moraes, do soneto de fundo sentimental (ou reflexivo com tentativas de tiradas filosóficas), ao gosto popular, vazado em linguagem simples, coloquial às vezes, e musical. Já da obra do polígrafo Miguel de Moura, bastante numerosa, destaco a coletânea Pedra em Sobressalto, um livro de dicção drummondiana, com resultados estéticos consideráveis.
Dentro dessas três linhas, não incluí, propositadamente, o mais representativo dos nossos poetas, H. Dobal, um caso sui generis, afirmo sem medo de exagerar, na moderna poesia em língua portuguesa. Como Nauro Machado no Maranhão, outro gigante, Dobal é um poeta de escassos leitores fora de sua cercania, exceção feita aos críticos (Wilson Martins, Fábio Lucas e Ivan Junqueira são alguns dos seus admiradores). A respeito dele, assim se expressou Manuel Bandeira: “Só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento visceral da terra.”.
No conto, não temos, atualmente, um único nome que se eleve à média nacional. Continuamos, a maioria, tentando maquiar (ou macaquear) o velho e cansado regionalismo. Podemos, ainda assim, citar o já aludido H. Dobal e seu memorialismo lírico, que engendra mais propriamente prosa poética do que conto, e Airton Sampaio, em cuja produção, irregular, encontram-se momentos de contenção e lirismo melancólico em peças bem acabadas como Madalena e Canto dos Galos. Na crônica, o nome principal e, sem dúvida, Cinéas Santos: linguagem escorreita, ironia e auto-ironia mordazes e lirismo garantem-lhe um texto inteligente e agradável de se ler.
No romance, a figura sem paralelo é O. G. Rego de Carvalho. Eterno revisor de seus textos, O. G. (assim carinhosamente o chamam) adensa-se nos dramas metafísicos do homem sem deixar de lado o painel sociocultural em que trafegam seus seres perturbados, como os de Dostoiévski. Filia-se, pois, a uma família de romancistas importantes, mas pouco considerados, como Cornélio Penna e Lúcio Cardoso. Ao ler Rio Subterrâneo, sua obra magna, assim se expressou Carlos Drummond de Andrade: “tirei forte sensação de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada com aguda consciência artística”. Dentre os mais recentes, arrisco destacar Vozes da Ribanceira, de Oton Lustosa, um painel balzaquiano sobre a vida regrada dos moradores do Poti Velho, bairro que deu origem a Teresina, no fim do regime militar.
E, para encerrar, meia palavra sobre o cinema. O cinéfilo destas paragens sofre: não há sequer uma sala de projeção voltada para o cinema de arte. A saída é recorrer às locadoras e ver os filmes de forma precária na tela de uma TV. Grupos ligados à Universidade Federal do Piauí (UFPI), na tentativa de sanar esta lacuna, exibem e discutem – por um viés sociológico que pouco contribui para a compreensão do cinema enquanto arte – obras importantes da história cinematográfica. Douglas Machado, que viveu muitos anos no exterior, é, assim, nosso único cineasta no sentido lato, e, em torno dele, já se reúnem jovens que aspiram fazer cinema. Machado, até agora, produziu dois documentários, um sobre H. Dobal e o mais recente sobre Ariano Suassuna. Em 2001, ele produziu seu primeiro longa, Cipriano, um filme barato mas de resultado estético surpreendente. Dialogando estruturalmente com a obra prima Sonhos, de Akira Kurosawa, Cipriano se adensa no imaginário místico-religioso do homem nordestino sem apelar para o pitoresco, numa visada barroca não muito distante do universo de Glauber Rocha. A ruptura com a linearidade e a busca de um modo de narrar anticonvencional revelam a influência de Orson Welles de Cidadão Kane e do romancista William Faulkner.
Começo pela poesia, onde a produção, pelo menos quantitativamente, é mais vigorosa. Grosso modo, existem três linhas de força: – a dos remanescentes da poesia marginal, aqui autocognominados de geração pós-69; – uma geração jovem que começou a emergir no final da década de 1990 e se reúne em torno da revista e site Amálgama; – e a dos grupos acadêmicos (e são muitas academias por aqui, embora a Academia Piauiense de Letras seja, de longe, a de maior prestígio).
Essa geração, que edita a revista Pulsar, constitui o grupo mais coeso e com o programa estético mais bem delineado. Da poesia marginal dos anos 1970 permanecem vivos nos autores dessa confraria o gosto pelo coloquial, a tematização do cotidiano, o minimalismo, o antiintelectualismo e, em alguns casos, o jogo com a visualidade, ainda que muitas vezes incipiente. Muitos autores dessa “linha de força”, ostentando o improviso e o desconhecimento da tradição poética como salvo-condutos, sucumbiram pela repetição, pelo relaxamento formal a pretexto de protesto ou de experimentalismo. Ainda assim, três poetas ciosos, que gestaram suas obras com mais paciência e consciência estética, se sobressaíram. Paulo Machado é um poeta que funde o verso contido e rico em alusões culturais de H. Dobal com memorialismo à Drummond, realizando uma espécie de crônica em versos ou reportagem poética de Teresina. Durvalino Couto é autor de um único em versos, Os Caçadores de Prosódia, súmula impressionante e irregular – cujo leitmotiv é a ironia ferina – de diversas tendências da poesia brasileira das últimas décadas: concretismo, poesia marginal, poema-processo, prosa beat, letras de músicas e até sonetos fesceninos. E, finalmente, Rubervam du Nascimento, esteticamente o mais eficaz dos três, autor de A Profissão dos Peixes e Marco Lusbel Desce ao Inferno, este último, de pendor épico, funde a postura combativa da poesia engajada ao experimentalismo das vanguardas formalistas.
No que concerne aos poetas de Amálgama – e aqui falo com um grau de isenção mínimo – não se pode exigir, ainda, realizações estéticas de envergadura (há autores como Alexandre Bacelar, que nem publicam livro). Por enquanto, o campo de ação mais efetivo da geração Amálgama tem sido na crítica, com intervenções polêmicas e releituras de autores e obras relevantes. Algumas posturas – e não características propriamente propriamente – comuns a esses autores: a tentativa de reliteralização do código literário; indissociabilidade das tarefas de criador e crítico; tentativa de desprovincialização da literatura, postura mais universalista; ceticismo, relativismo, consciência pós-utópica. Vale a pena destacar, deste clã, o trabalho poético de Ranieri Ribas em Os Cactus de Lakatus, obra singular pelo seu radicalismo lingüístico-experimental, marcado por múltiplas influências, entre elas o visualismo concretista, os neologismos à Joyce, Guimarães e Girondo e a poesia experimental de e.e.cummings. Digno de nota também é a poesia, meio neo-romântica, meio surreal de Dilson Lages, que obtém seus melhores poemas no erotismo difuso, encoberto de imagens oníricas. Cabe ressaltar, também, o trabalho de Adriano Lobão que, tendo estreado mal, subiu significativamente de produção com Entrega a Própria Lança na Rude Batalha em que Morra, cujos melhores poemas são calcados em pesquisas históricas e na colagem de versos e fragmentos, à maneira de Eliot, e refletem a leitura acurada de Gerardo Mello Mourão e João Cabral de Melo Neto.
A terceira linha de força que enumerei, a de poetas ligados a academias, apresenta como nomes mais significativos Francisco Miguel de Moura e Hardi Filho. De um modo geral – a exceção é Miguel de Moura – a poesia desta plêiade liga-se a temas tradicionais, de fundo romântico-simbolista, com a livre oscilação entre formas tradicionais (em geral, o soneto) e o verso livre. Não são poucos os poetas daqui que praticam a chamada “poesia de fim de semana” ou a “poesia como terapia”, embora não o admitam. O melhor da produção de Hardi Filho parece estar no soneto, especialmente na sua coletânea Estação 14: ele dá continuidade à tradição, tão bem fixada por Vinícius de Moraes, do soneto de fundo sentimental (ou reflexivo com tentativas de tiradas filosóficas), ao gosto popular, vazado em linguagem simples, coloquial às vezes, e musical. Já da obra do polígrafo Miguel de Moura, bastante numerosa, destaco a coletânea Pedra em Sobressalto, um livro de dicção drummondiana, com resultados estéticos consideráveis.
Dentro dessas três linhas, não incluí, propositadamente, o mais representativo dos nossos poetas, H. Dobal, um caso sui generis, afirmo sem medo de exagerar, na moderna poesia em língua portuguesa. Como Nauro Machado no Maranhão, outro gigante, Dobal é um poeta de escassos leitores fora de sua cercania, exceção feita aos críticos (Wilson Martins, Fábio Lucas e Ivan Junqueira são alguns dos seus admiradores). A respeito dele, assim se expressou Manuel Bandeira: “Só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento visceral da terra.”.
No conto, não temos, atualmente, um único nome que se eleve à média nacional. Continuamos, a maioria, tentando maquiar (ou macaquear) o velho e cansado regionalismo. Podemos, ainda assim, citar o já aludido H. Dobal e seu memorialismo lírico, que engendra mais propriamente prosa poética do que conto, e Airton Sampaio, em cuja produção, irregular, encontram-se momentos de contenção e lirismo melancólico em peças bem acabadas como Madalena e Canto dos Galos. Na crônica, o nome principal e, sem dúvida, Cinéas Santos: linguagem escorreita, ironia e auto-ironia mordazes e lirismo garantem-lhe um texto inteligente e agradável de se ler.
No romance, a figura sem paralelo é O. G. Rego de Carvalho. Eterno revisor de seus textos, O. G. (assim carinhosamente o chamam) adensa-se nos dramas metafísicos do homem sem deixar de lado o painel sociocultural em que trafegam seus seres perturbados, como os de Dostoiévski. Filia-se, pois, a uma família de romancistas importantes, mas pouco considerados, como Cornélio Penna e Lúcio Cardoso. Ao ler Rio Subterrâneo, sua obra magna, assim se expressou Carlos Drummond de Andrade: “tirei forte sensação de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada com aguda consciência artística”. Dentre os mais recentes, arrisco destacar Vozes da Ribanceira, de Oton Lustosa, um painel balzaquiano sobre a vida regrada dos moradores do Poti Velho, bairro que deu origem a Teresina, no fim do regime militar.
E, para encerrar, meia palavra sobre o cinema. O cinéfilo destas paragens sofre: não há sequer uma sala de projeção voltada para o cinema de arte. A saída é recorrer às locadoras e ver os filmes de forma precária na tela de uma TV. Grupos ligados à Universidade Federal do Piauí (UFPI), na tentativa de sanar esta lacuna, exibem e discutem – por um viés sociológico que pouco contribui para a compreensão do cinema enquanto arte – obras importantes da história cinematográfica. Douglas Machado, que viveu muitos anos no exterior, é, assim, nosso único cineasta no sentido lato, e, em torno dele, já se reúnem jovens que aspiram fazer cinema. Machado, até agora, produziu dois documentários, um sobre H. Dobal e o mais recente sobre Ariano Suassuna. Em 2001, ele produziu seu primeiro longa, Cipriano, um filme barato mas de resultado estético surpreendente. Dialogando estruturalmente com a obra prima Sonhos, de Akira Kurosawa, Cipriano se adensa no imaginário místico-religioso do homem nordestino sem apelar para o pitoresco, numa visada barroca não muito distante do universo de Glauber Rocha. A ruptura com a linearidade e a busca de um modo de narrar anticonvencional revelam a influência de Orson Welles de Cidadão Kane e do romancista William Faulkner.
(Transcrito da revista "Discutindo Literatura", Ano 1, nº 2, pg.4o - s/data, Editora Escala, São Paulo - SP)
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*Wanderson Lima é poeta, professor e co-editor de Amálgama(revista).
Autor de "Escola de Ícaro" (2000) e "Morfologia da Noite" (2001).
Atualmente faz mestrado e desenvolve dissertação sobre a poesia
de H. Dobal.
Um comentário:
Artigo bem urdido, escrito de forma clara e concisa. Wanderson Lima é um dos bons, ótimos talvez, poetas da nova geração da poesia piauiense - que no meu entendimento não deixa nada a desejar aos chamados poetas do sul, do Brasil, do Rio, de São Paulo, de onde quer que seja. Porque, na verdade, hoje, não temos mais centro cultural: tudo é Brasil, especialmente com a internete.
chico miguel
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