Memórias, autobiografias e cartas são gêneros literários menores quando comparados com a poesia, o conto, a crônica, a novela e o romance, os gêneros maiores da Literatura. Memórias valiosas, escritas com criatividade são as “Memórias” e “Memórias Inacabadas”, de Humberto de Campos, e as “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Memorial de Aires”, não obstante o nome, são dois dos melhores romances do mestre Machado de Assis. E até onde eu sei, Machado não escreveu nenhum livro de memórias. Ao citar essas obras importantes, eu quis chegar justamente ao nome “memorial” dado, hodiernamente, a um tipo de memórias que não chega a ser simplesmente um relato colado a fatos “reais”, por ser também um trabalho da imaginação mais do que arrancado da memória, quando haja realmente o distanciamento da crua realidade, ou o que se poderia chamar de “real”. Mas real mesmo, na Literatura, é a própria ficção, a mentira que o escritor imagina, cria e escreve. Quem mais mente na vida são os escritores e poetas. Como na poesia normalmente não há personagens, dá-se o fenômeno de tomar-se o autor como o personagem de tudo, pensando que o que o poeta escreve se refere a si mesmo e a sua vida, o que não é verdade, nem poderia ser. Se assim fora, transformar-se-ia num simples memorialista. O poeta Luiz Ayrton Santos, no lançamento de seu livro de poesias, “Objeto-Presença”, faz um aviso muito interessante: “Os poetas escrevem para todos, para o mundo, por isto em meu livro não coloquei nenhum poema com oferecimento a ninguém”.
Para poetas e poetisas, agora faço uma observação, que pode vir a ser contestada, como qualquer outra: O homem é mais livre, trabalha com o cérebro e as emoções. Com a mulher-poeta dá-se o contrário: ela faz-se descritiva, esmiúça, é menos filosófica. Cecília Meireles superou esta contradição, fenômeno que não sei explicar. E também não há como torcer a verdade: - As musas da poesia são as mulheres e os homens entre si, o sexo exerce uma influência extraordinária no corpo e na alma, mais a natureza, o céu e a terra, os pecados da carne e a força do espírito, a verdade. Filosofia, amores e amizades são conteúdos quase sempre presentes. Mas, “antes de tudo, o verbo, a palavra”, a forma, o trabalho que também sua e merece ser pago. E para não deixar em mim recolhida a tentação referencial da infância, cometi a loucura, a santa loucura de juntar algumas crônicas escritas há mais de dez anos com outras recentes, ao que acrescentei contos especiais para a obra e dentro do propósito de reconstituir a infância perdida. Construí o livro “O menino quase perdido” arrumando-o ao jeito de o leitor chegar a um final de transfiguração romântico-poética, mesmo que avançando até a primeira fase da adolescência do menino. Assim, o transformei em um memorial. Recebi críticas reconhecendo-o como um ótimo livro de “memória da infância”, mas que ia, além disto, pela qualidade do estilo e pela perfeita transcriação poética do texto. Confesso que escrevi mais sobre o que vi, não vi e/ou não lembrava: o reinventando. Há uma peça em que converso com minha bisavó Mãe Ana, morta há quase cem anos. Eu não cheguei a conhecer nem minha avó materna.
Numa peregrinação recente que fizemos, eu e minha mulher, a Jerusalém, visitamos os lugares sagrados (para mim, uma aprendizagem inigualável) e pisamos por onde Jesus andou e sofreu até a morte na cruz, Jesus, o maior sábio que veio ao mundo como Filho de Deus para nos salvar. A viagem também me foi muito divertida. Alguns companheiros propuseram, não sei se seriamente, que eu escrevesse um livro de memórias da viagem. “Desculpem-me, mas não sou escritor de memórias, relatos de viagem, essa coisa toda”, respondi. E pensei em apontar o Pe. Tony, que também escreve ótimas crônicas na imprensa, mas calei. De qualquer forma, o que ele escreveu, leu, distribuiu e falou em seus belos sermões, tudo isto já vale como memória da viagem (sem a pretensão de que estava escrevendo memórias). Memórias e biografias são escritas por e para os narcisistas. Memórias, nunca mais. De viagem? Deus me livre e guarde. Queria ver tudo e sentir as coisas belas que visitamos, as pessoas, os modos, os costumes. E recomendo a quem está entrando para a bela e “charmosa” área das Letras, que não se meta a começar pela poesia e/ou entrar para as biografias e memórias. Caminho errado. Poesia é o sumo, a súmula de uma das mais belas criações do espírito, na busca de conhecer-se a si mesmo e conhecer o outro, da compreensão do mundo e do eterno. Enquanto existir poesia, a humanidade continuará humana e com possibilidades de crescimento. Somente os tolos fazem “gozação” da poesia e das artes em geral. Para os que a entendem, na viagem recitei o soneto “Contraste”, do Pe. Antônio Tomaz, a pedido do Dr. Tupinambá e do Pe.Tony Batista.
________________________*Francisco Miguel de Moura - Escritor brasileiro, membro da Academia Piauiense de Letras, sócio da International Writers and Artists Association, Toledo, OH, Esados Unidos.