DEVANEIO
Romanilta Rocha
Chico
Miguel voltava ao torrão natal, a sua eterna Jenipapeiro, lugar amado e tão
intimamente conhecido, pois as mais tenras memórias da sua meninice ainda
teimavam em brincar sob suas retinas, mas, olhando a paisagem vazia, uma
angústia o sufocava por lhe preencher a alma de tantas dúvidas: “Por que tudo estava tão ermo?” “ Onde estavam seus confrades da ALVAR àquele
momento?”
Era
16 de junho de 2021, conforme o que propusera a sua família, não sem muita insistência, concordara em
receber os amigos da ALVAR para celebrar os seus 88 anos, na “Serra dos
Mouras”, um bucólico paraíso fincado nas proximidades da sede da sua amada Francisco Santos .
Não que lhe fosse um fardo receber tão caros
amigos, entretanto o jeito retraído e de poucas conversas sempre o acompanhou.
Chico Miguel tinha predileção mesmo era para “coloquiar” com as letras; seus
poemas e romances ecoavam com eloquência o que por muitas vezes as palavras
emudeciam. No entanto, Dona Mécia Moura, sua companheira da vida toda, tanto
admoestou com firmeza e brandura seu amado, que fê-lo aceitar que completar
aquela idade é uma dádiva a ser compartilhada com os que realmente lhes são
caros: a família e os amigos. Desta feita, lá estava o grande escritor
francisco-santense, com a ansiedade tão característica aos bons anfitriões.
Por
um lapso de tempo, Chico fitou o olhar no pequeno orvalho que ainda gotejava a
folha virgem, no verdejante capim solto à brisa e nas águas apressadas do
Riachão, que descia o monte, porém até onde a vista alcançava nem um resquício
dos convidados e isto mais contribuía para aguçar as suas interrogações: “O que
fora feito das pessoas convidadas?” “Por que nem o poeta Rogério Santos, Iara
Marina, Joaquim Neto e Geovane, que praticamente moravam colados à Serra dos
Mouras, não davam o ar da graça?
De
súbito, o poeta se detém com mais acuidade ao seu entorno e percebe pelo
silêncio ensurdecedor que algo ao derredor se fazia diferente e fica a se
questionar: “O que fora feito dos viventes dali?” “Por que nem um cordeiro
pastava naquele imensurável campo?” “Por que nem um eco das canções juvenis
ecoava junto às águas do Riachão, que agora seus olhos contemplavam?”
A
imaginação do aniversariante vagueia e rememora que já fazia um tempo
incontável, quando uma seca tenebrosa, daquelas que expõem ao pânico mesmo o
que está mais recôndito em nossas almas, o extraíra dali, fazendo-o ver que a
terra estava árida e infecunda; o sol abrasador mais tardava a abraçar o
poente... A agonia de mirrados e parcos rebanhos junto à força de uma gente
bravia que teimava em manter-se de pé foram, também, imagens que se impregnaram
nele. Porém,
agora, quando se parecia ter soprado o hálito da vida, o bálsamo da
sobrevivência em cada recanto daquele lugar, tudo se fazia tão deserto.
Ele não compreendia... Já estava quase
em pane.
Eis
que o burburinho que vinha da velha e conservada casa, precisamente da ampla
cozinha, onde as mulheres e os homens cuidavam dos últimos detalhes do farto
almoço que seria servido, começava o alertar e, num misto de um delírio real
ou, quem sabe, de uma realidade onírica, subitamente um facho de luz o desperta
e confortavelmente deitado numa rede daquelas que acarinham até a alma da
pessoa, ele entende que apenas sonhava. E Chico Miguel vê que ao contrário do
que pregava seu devaneio não foi desta vez que a cruel estiagem, que assolou e
oxalá demore vir, extinguiu os bravos seres do sertão do seu querido Piauí. Ele
apenas sonhava.
Lá
fora, acabavam de chegar, de diversas localizações, os tão estimados e seletos
amigos. Da aprazível SAL, Nilvon e sua linda Márcia foram os primeiros. De
Teresina , Romanilta Júlia e Firmina
Arrais já haviam chegado. Após, chegaram Nonato e família da Atenas
Brasileira. Os Klein vindos da Terra da Garoa foram os seguintes e da Cidade
Maravilhosa o grande Elves França veio exclusivamente prestigiar tão grande
evento. Da capital federal vieram especialmente
para a ocasião Gilson Chagas e João
Erismá. Mais tarde um pouco, advindos de Alagoinhas, D. Fidélia, Eva
Graça , Regivalda e o poeta Samuel; Santinha chegava de sua amada Monsenhor
Hipólito; Deolinda veio lá da Lagoa Grande e Raimundinha, Rômulo Rossy, junto
ao escritor Francisco de Assis, rumaram da linda São Julião e compunham a primeira
leva de convidados que alegrariam a tarde. Àquela altura, acomodados sob os
arejados alpendres, Geovane e o poeta Rogério já digladiavam com rimas e
versos. Era a vez do poeta Rogério que extasiava a alma do aniversariante ao
lançar:
Eu não digo por vaidade
Falsa modéstia ou coisa
afim
Mas, sob este céu, não há
para mim
Sinônimo de maior
intelectualidade
No verso, na prosa e na
inventividade
Que o excelso Chico
Miguel de Moura
Brilhante feito este sol
que a terra doura
Assim, é algo inexprimível
Dizer o quanto é
incrível
E pródiga a sua
literária lavoura.
Mal
o grande Chico Miguel sorvera as últimas palavras da estrofe de Rogério, eis
que seu filho Fritz, em Teresina, toca-lhe suavemente o braço e diz:
- Papai! Papai! Acorda! Já são 17 horas, vou
levar o senhor para sua casa, pois logo mais vai começar a “live” do
Sarau da ALVAR em homenagem à sua data natalícia.
Despertando
daquele devaneio tão nitidamente impregnado na sua memória recente, Chico
Miguel sorrateiramente dispara:
-
Eu quero é chegar em casa e dormir novamente até a hora do Sarau. Quem sabe não
tenha o capítulo seguinte da minha festa lá para as bandas da “Serra dos
Mouras”?! - exclamou interrogando a Fritz que nada compreendeu.
Enfim,
o poeta estava no seu quarto. Era tardinha, antes de entrar, lá fora, de
relance pôde observar os matizes de um crepúsculo que parecia a paleta de um pintor,
ora melancólico com seus tons lilases, ora pleno de alegria com as cores
alaranjadas a preencher cada pedacinho de céu. Mas pouco se deu conta do ocaso
e resolveu cair novamente sob os domínios de Orfeu, pelo menos até a hora do
sarau.
E não é que o capítulo dois do seu sonho se
descortinava! Agora ele tinha consciência, mesmo em estado de sono, que voltava
ao sonho que tivera antes do despertar de Fritz. Senão como explicar a paisagem
da conhecida “Serra dos Mouras'' que se configurava aos seus olhos, o jardim
repleto de onze horas que era um dos tesouros de D. Mécia? Estava contemplativo
no deleite deste jardim, quando mais uma vez, Fritz lhe chama:
--Desperta, papai! O sarau já começou, veja
que linda homenagem os caríssimos confrades alvarianos estão prestando ao
senhor!
Uma
voz que lhe era familiar e cujas feições também já tinha visto, uma vez que
tinha se deparado com aquele timbre e com aquela imagem em outras lives da
ALVAR, recitava os seguintes versos do magnânimo poeta do Jenipapeiro:
Quem é você?
EU?
Não me perguntem quem
sou.
Fui… Não vou descer.
Nem voltarei
a um mundo que rui
por trás de algumas
fábulas,
rainhas, princesas,
santos, reis
e paredes.
Acreditar me dói,
tudo está para os outros.
Sim, os que viveram
as mesmas ficções
mortais,
as mesmas ilusões fatais.
Me vejo no alheio
espelho,
como se contra-face:
O rótulo que calçam,
a etiqueta que vestem,
o vinho que entornam,
a cerveja que arrotam,
o mercado, a propaganda,
a arte não-barroca, oca,
os gritos da tevê
onde ninguém me vê.
Não! Nada sou para os
sepulcros
negros da noite.
Só, comigo estou.
Sou luzeiro na escuridão,
ninguém me vê. Nem ouve.
As) Francisco Miguel de
Moura
Era
Raimunda Leonília, uma singela admiradora do nobre Chico Miguel, que comunicava
aos demais colegas da Academia que estava oficialmente aberto o Sarau em
homenagem ao ilustre aniversariante, o grande mestre Francisco Miguel de Moura.
E foi uma linda e emocionante noite de afetos e alegrias, ainda que
virtualmente.
Um comentário:
Mestre Francisco Miguel de Moura, eu agradeço imensamente a honra do compartilhar deste meu texto! Toda honra à brilhante figura que o senhor representa na Literatura Brasileira e, em especial, na nossa ALVAR.
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