segunda-feira, 14 de outubro de 2019

50 SONETOS INÉDITOS, DE FRANCISCO MIGUEL DE MOURA



A CASA E O POETA

A casa do poeta  tem por via 
a fala dos irmãos com outro irmão;
de uma vida coberta de  paixão,
as confissões: tristeza ou alegria.

É um menino pequeno (como não?)
no que quis e jamais pôde alcançar,
que  sofre  tantas  vezes  por amar,
quantas vezes num choro sem razão.

De medo, treme à vista do vizinho,
pois no quintal dos fundos grita e freme
um diabo nu, barrando o seu caminho.

Diante de Deus e de Nossa Senhora,
pede conformação para quem geme...
E não terá sua casa onde não mora.
                     

AMOR, SEMPRE AMOR (1)


 

Eras tu a mais linda da cidade.

E eu cheguei, um matuto impertinente,
apelidado até de inteligente
por colegas, amigos na verdade.

Teus sorrisos me enchiam de vaidade
e àqueles que te tinham de inocente,
e a mim me enfeitiçaram de repente,
como ninguém calcula. Ninguém há de

saber o que lutei para ganhar-te,
para querer-me ali, e em qualquer parte,
e, enfim, nos enlaçarmos com ardor.

Fogo em que conservamos, te asseguro,
a minha felicidade e o teu futuro
para viver tão puro e santo amor.

AMOR, SEMPRE AMOR (2)


                   

Mudam-se tempos, vidas e pesares,

mas, como outrora, a amar continuaremos.
Amo-te mais, não queiras nem saber,
amas-me mais agora e como sempre.

Se outrora caminhamos de mãos dadas,
era o medo do mundo e suas garras.
Já hoje nos soltamos pra andar juntos,
pra mais amar, que o nossa amor se aclara.

Teu corpo de menina e de mulher
Que tanto outrora já me deu ciúmes,

Hoje é prazer e graça como nunca.


Sendo eu feio, invulgar, e tu, tão bela

formamos lindo par por toda a vida
e abraçaremos outras se inda houver.

DEUSA


Era uma deusa humanamente bela,
de olhos molhados a deitarem luz,
sobre perdidos corações sem cores.
Desprendia paixões nos seus encantos.

Da carne, o cheiro, a tepidez, o orvalho
eram pingos da tarde... E a noite vinha.
Mas o brilho dos olhos tão intenso
iluminava  todos os caminhos.

E eu disse  “tolo”!  à blusa que se abria
à brisa, que assanhava as mentes frias,
cheia da graça dos recantos da alma.

De repente,  nas asas dos seus braços
levado vi-me e, pelos céus abertos,
caírem penas pelos meus pecados.
A DESCIDA

              
Quantos anos que gente sobe a vida
pensando que subiu, cresceu, mudou,
a enganar-se na festa e na bebida,
pra ignorar o mundo – este robô!

Vive-se o tempo.  E as horas consumidas
em vãos gozos e gulas, sem fronteiras,
desconhecem as dores e as mentiras,
e o fumo das batalhas derradeiras.

Ninguém espreita a onda dos mistérios,
da doença e da velhice, e o conteúdo
pra encarar  sem máscara seus impérios.

A lei da morte apaga amor, carinhos,
porque o tempo de Deus ficou desnudo
na cruel desesperança dos caminhos.


A DEUSA NUA




Vi uma deusa solitária e nua,
a correr pelas praias. Seu segredo
era o silêncio. Eu quase senti medo
daquela cor de prata, cor de lua.

Corri para apanhá-la, ainda era cedo!
Com vergonha de mim, vindo da rua
tão faminto e cansado. E ela recua...
“Se deusa for”, gritei, “vou ficar quedo”.

E ela correu de novo... E, atrás, perdido,
desesperado, eu, louco e comovido,
queria o mel dos lábios cor de beijos.

Cego e surdo, ante aquela formosura,
seio pulsante, o’ estranha criatura!... 
Caí morrendo a morte dos desejos.

A PARTIDA

 

 

Na partida os adeuses, gume e corte

dos prazeres do  amor, quanto tormento!
Cada qual que demonstre quanto é forte,
lábios secos mordendo o sentimento.

Do ser brotam soluços a toda hora,
as faces no calor do perdimento,
olhos no chão, no ar, por dentro e fora,
pedem aos céus a força e o alimento.

Ninguém vai, ninguém fica. Oh! se reparte
no transporte que  liga e que desliga!
Confusão de saber quem fica ou parte.

Não se explica tamanha intensidade

Amarga, e doce, e errante, que interliga
os corações perdidos de saudade.


AS COISAS QUE...



Passo a limpo os guardados, vejo a capa
de um livro de poemas que me  roeu
por ter nele o meu rosto!... Olho-o, à socapa,
tentando deslembrar quem era eu.

O mundo é diferente em cada etapa,
e a gente nem percebe que sofreu.
Já não quero  sequer buscar, no mapa,
a alma, o sonho onde ela se perdeu.

Como senti-me mal  naquele dia!
Mas me guardei daquela coisa fria
pra me esquecer, enfim, que fui um jovem.

Por que perder meu tempo em desmazelo?
Se o passado morreu já não é belo,
quero o presente e as coisas que nos movem.

CAMINHANTE



                   
No início, para trás eram meus passos,
mesmo assim alcancei quem se atrasou
mais do que eu, quem nada me escutou.
Meus pés doíam presos a alguns laços...

De rosto, a olhar em volta do ocidente,
jamais ouvi um som de voz alheia,
sem ver minhas pegadas pela areia,
a curtir um passado inconseqüente. 

 

Fiz pecados tão poucos, rezei tudo.

Cansado de falar me tornei mudo,
de tanto acreditar fiquei descrente.

Atrasei-me de amor pelo vizinho,
mas descobri, agora, que sozinho
ainda posso dar passos para frente.


DA VIDA E DA MORTE
                   

Há quem busque esta vida noutra vida,
e são felizes recriação da morte.
E quem encontre a vida na antemorte,
e são felizes plenamente em vida.

Por que preocupar-se com a tal morte,
se ela vem no seu tempo como a vida,
ou depois. E se o ente está sem vida,
logo o engana e faz dele vida e morte?

Há quem, afadigado pela vida,
transforme a vida-vida em vida-morte
e passe uma existência sem ter vida.

E os que só vivem dissecando a morte
pra saber se depois da vida há vida,
ou se depois da morte tudo é morte.

DESENCONTRO (1)

                   

Tomado de saudade e sofrimento,
um dia eu quis rever a terra amada.
sondei a posição varia do vento
e pus meus olhos e meus pés na estrada.

Noite ainda (acordei de madrugada),
tinha a lua por luz, por seguimento...
Nem sentia o cansaço da jornada,
pensando no ontem, no hoje, como alento.

Me alegrava pisar velhos caminhos!
Os pássaros contavam nos deus ninhos
e a natureza toda, então, sorria.

Ouvi tocar o sino em minha aldeia,
lembrei das orações na hora da ceia
e da casa que outrora me acolhia.

DESENCONTRO (2)


Fui devagar, pois, afinal, queria
gozar a sensação de uma beleza
que me ficara intacta, à alma presa,
bem distante da atual selvageria.

Meus olhos, percorrendo a redondeza,
iam matando as sombras sem valia,
cheio de força, o copo estremecia,
e de calor e luz... Longe a tristeza.

Era um quadro tão belo e tão feliz,
do qual jamais pudera ser juiz...
Porém, quando cheguei: - “Que coisa alheia!”

– exclamei. A montanha era mais baixa,
a igreja velha, o sino rouco, e a faixa
de rua era tão feia... Era tão feia!...
DESENCONTRO (3)
                   

Vi que o tempo não poupa, tudo encaixa,
mexe na minha vida e faz sua teia...
O sangue virou gelo em minha veia,
a pressão, que me era alta, se  rebaixa.

Luz se havia era  pouca., e de candeia,
no breu da noite... E não havia caixa
de banco... Nem  rapaz e nem muchacha...
Deserta de homem, de mulher, a aldeia.

Então, pergunto a mim: Qual o destino,
se vim buscar aqui meu ser menino
e menino nenhum aqui encontro?

Vim rever minha terra e  meu passado.
Mas, o que  vejo? - Um sonho naufragado...
E eu perdido num louco desencontro!

EM DUAS RIMAS



A vida nasce numa enorme festa,
Nasce do amor, no instante da folia
Do sexo, da paixão e da alegria.
Mas também chora, a vida é uma floresta.

Há confusões. Porém sobra uma fresta
Por onde socorrer-se na agonia,
Dá passagens na busca de harmonia.
Há morte e vida e luzes nessa gesta.

Há buscas ideais, filosofia...
Indagações: – Meu Deus, que coisa é esta?
O amor a transformar-se em poesia.

E assim morrer: – Cantando uma seresta,
Ou ir sorrindo para uma outra festa
É o fim que todo homem gostaria.

EMOÇÕES


         
Só tenho olhos pra aquilo que me nega,
só sinto o cheiro e a fala  de outras  vinhas,
mais me apetece o rosto que as covinhas,
e em mim a luz é sombra e se me integra.

Se há gosto em minha boca, não me pega,
mas se meu corpo alisam –  coisa minha –,
meu passado sofrido se esfarinha
e a nuvem interior se desintegra.

A natureza, em mim, vem da floresta.
Gosto do vento a arrepiar a testa,
gosto de rir... Mas como rir primeiro?

Vivo tão sério! Não, de mim não riam,
se as emoções mais tolas me aliviam:
- São pérolas que dôo ao mundo inteiro!

ENIGMA-MULHER

                             
Ontem mangas voaram... Tão distante!
Saias também subiram pelas pernas
bem torneadas. E as mamas lindas, ternas,
se entremostraram... descobrindo avante. 

Hoje, a bermuda é moda até demais
eis que decente, encurta sem temor,
mostra o bucho, o embigo, e em seu redor
ficam léguas de frente e légua atrás.

Que lhe faltou: vergonha ou vestuário?
Pernas, seios, sovacos... Um estuário
de entrância e reentrância é quanto salva.

Mas inda falta descobrir-se. Quer?
– As curvas caprichosas da mulher,
lá nos desvãos escuros de sua alma.

GOZO EXTENSO


Gozo os segundos todos, ano a ano,

do que ainda me resta por saúde,
não me entristece olhar o que não pude
ser. E dos meus achaques não me ufano.

No que fiz e refiz, por ser humano,
injetei muitas gotas de bondade.
Pela essência da calma que me invade,
sou a esperança no que não me engano.

E em tudo a fortaleza me aclareia
como os gozos de outrora... Tão intenso
é o meu prazer e minha nova messe.

No momento outro sonho é que me enleia:
- O encanto de saber que estou imenso,
num coração que, enfim, rejuvenesce.

MÁRTIR

 


De que serve contar já tantos anos

de vida, se a verdade foge e foge,
o ontem nunca mais tornando ao hoje,
e o amanhã  tão perto, e  seus enganos?

Não me valeram experiência e danos
que as primaveras fúteis produziram,
se, em  lugar de saudades, me surgiram
só lembranças inúteis, desenganos...

De que posso, vaidoso, me gabar

senão da arte, em saber ouvi-la e vê-la,
embora não me leve a qualquer parte?

Ora, bem! Zombarei do grande azar
de ter nascido em Vênus, bela estrela,
pra fazer vida no planeta Marte.

MINUTO ETERNO

                                      


Deitada é bela, e, se levanta, estua:
Sinal de cio... Fecha os olhos, pensa?...
Como, então, me darei a recompensa
de mais de perto vê-la inda mais nua?

Voar ao prédio em frente desta rua
e surpreendê-la em sua displicência?
Perder todo este medo e a paciência
de anjo sem paz que sabe e não flutua?

Vou morrer de ciúme aqui, de longe,
por não tê-la sequer um só segundo,
por delirar, na posição de monge.

Se fosse minha um só minuto – eterno–­,
zombaria das glórias deste mundo
e trocaria os céus por todo o  inferno.

VOYER
(Segunda versão de “Minuto Eterno”)

Seminua, deitada, insone e quente,
no sofá, fecha os olhos, pestaneja...
Ah, eu queria ter cometimentos
pra mais de perto vê-la, vê-la, vê-la!

Voar deste meu prédio lá, na frente,
tocar seu corpo em toda a displicência...
Ai, não posso! E com isto me entristeço
como um anjo incapaz, louco e doente.

Tenho ciúmes, sim, no longe-e-perto.
Vejo um inseto pousado no seu peito
quando aqui morro em posição de feto.

Se fosse minha por um dia apenas
seria o homem mais feliz do mundo,
renegaria os deuses do universo.

O FANTASMA


                             
Quem lhe matou a vida de menino
e a tão sonhada vida de rapaz?

Não sabe, está perdido e vai atrás

do perdido nos becos do destino.

Entre os deuses e o diabo, oh desatino!
de desistir ninguém o fez capaz.
Foi buscando vitória sem ter paz,
sem vislumbrar seu ser em pequenino.

Mesmo assim,  sob os gritos de revolta,
luta fria e ferozmente atrasado...
Só que um dia o fantasma a si se volta.

E renasce uma imagem tão candente
que o leva a gargalhar de toda gente,
no sorriso feliz de um só pecado.

O QUE MORRE


                             

Casa e caminhos morrem desamados,

esquecidos, na solidão do amém.

Os segredos falecem de guardados,
e amores morrem quando morre alguém.

O porto morre, a onda se esvazia,
e o sonho esvai-se quando acorrentado,
e treva nasce do morrer do dia.
Vão-se o rico, o feliz e o desgraçado.

Nada é perene, pois quem nasce vibra
somente um instante para a queda enorme,
eis que essa lei fatal tudo equilibra.

Morrem lembranças, fruto do passado,
e o presente e o futuro quando dorme
o homem sem fé, sem luz, abandonado.


OCEÂNICA

                   
                                      

Na partida, um  oceano  de revolta

cala meu peito em descontentamento.
– Vais aonde? – eu  pergunto – onda  tão solta? 
E ela me corta o coração  por dentro.

Sou areia, sou rocha e, em meu tormento,
choro e declamo, e o fogo me devora;
qual vulcão que nos mostra o epicentro,
outro vulcão me nasce aqui por fora.

Na partida, eu prometo consolar-me
do vácuo que me tolhe. E, sem alarme,
no amor a Deus apenas me concentro.

Meu mundo é solidão, é só  saudade
de quem levou minha tranqüilidade,
de quem  partiu meu coração por dentro.

SOMBRA


Minha sombra soçobra no que flui,
No horizonte de um deus fendido em dois:
– O futuro, do qual se foge em “ui”!
E o passado das noites e dos sóis.

Aquele vem de pé, mas tão veloz
Quanto o outro não foge – e como influi!
Um é terrível santo e tão sem voz,
O outro, deus e o diabo... E a carne rui.

Já não banco o santinho nem o herói,
Embora herde, dos dois, olhos azuis
E haja chorado à treva e à cor que dói.

Já não tenho esperança numa foz
De doçura e de amor que a amor conduz.
Minha sombra soçobra em caracóis.


PERFUME E COR



Subi às ribanceiras desta via
sem nenhum fruto ou flor, uma que fosse,
mas fui andando e meu dia clareou-se,
e então me deslumbrei com o que via.

Era um jardim com flores tantas, belas,
de olores que não pude compreender.
E havia as donas desse alvorecer,
regando as outras flores, quais estrelas.

Cheiro de gente, de suor, de beijos,
das duas moças ouviam-se os solfejos,
e delas vinha um mundo de fragrância.

Ah, como é lindo se subir às ribas!
E é disto que se nutrem os escribas,
e que os poetas cantam sua infância.

SINGULAR


É singular criatura. Das pequenas
E grandes porque reina (não são teses),
A conduzir, no bucho, longos meses,
O filho – em seu olhar, carícias plenas.

Mais do que isto: a mãe limpa-lhe as fezes,
Ganha de tudo onde sofrer é estima,
Deusa, abaixo de Deus ela só rima
Na proteção do infante. E morre às vezes.

Pois que ela rege, em templo tão fecundo,
Um musical no ventre, o gineceu,
De onde viemos nós, não me confundo.

Depois de minha mãe, só eu, sou eu...
Mãe, o’ mães, porque há tantas neste mundo
Resiste a humanidade, e não morreu.

TERNURA MIÚDA


                                      


Pelas coisas serenas me contenho
se ternamente nasçam da vontade,
do amor e do carinho, da bondade
daquilo que mais prezo e pouco tenho.

Venham doces carícias pelo vento,
beijar-me a sutil nuca que me impele
a estremecer e subir do imo à pele,
e bem voar pelo espaço em movimento.

Os pequeninos vidros mais perfume
têm  – que a filosofia não resume,
pois lhe falta ternura e tentação.

Nas invisíveis coisas me retiro,
nelas canto e me encanto e mais suspiro...
Todo o meu corpo é todo um coração.


ÚLTIMO OLHAR


Hora, afinal, de reconciliação

com os inimigos e os perseguidores,
sem alívio nenhum, trespassam dores...
Dos amigos? –  O amor e  a oração.

Como esquecer os gozos e a canção
da vida, o tempo em que teceu amores?
Vão colegas, vizinhos! Vãos clamores,
diante do horror dessa consternação.

Quero ligar-me a Deus, já na partida,
pra suportar o triste dos presentes,
numa clara humildade aborrecida...

Ah, recebo os divinos, santos óleos
e o pesar da mamãe e dos parentes,
com teu olhar por dentro dos meus olhos.

VELHAS PRAIAS




As velhas praias... Que saudade delas,
Do nosso idílio em dias juvenis:
- Uma moça e um rapaz banhando nelas,
Sem roupas, sem segredos, sem ardis.

Almas voando... Ai, como o tempo voa
Nas palmeiras cantando... Porque o vento
Entre arrepios no horizonte ecoa
Atento ao som, à luz, ao movimento.

Almas e corpos que amam são a messe,
São a chama, a pureza, são a prece
Que se eleva do mundo ao Criador.

No sul, no norte, as praias são lembranças
Do tempo em que conosco as esperanças
Eram certezas como o nosso Amor.

O ÚLTIMO BEIJO

Uma deusa te pega pela mão

contra inimigos e perseguidores,
abre o seio do leite dos amores,
e começa a tua fé no coração.

Os olhos dela encantam, na canção
da vida é tempo de tecer as cores,
e os amigos, e os campos e as flores,
diante dum palco de contradição.

O tempo vai passando em grande lida,
te envelheces, te cansas na subida,
e a glória alcançarás entre os escolhos.

A hora, enfim lhe chega, da partida,
banhado em pranto e d’alma recolhida,
 um rosto de mulher beija teus olhos.

PERFUME E COR



Subi  às ribanceiras desta via
sem nenhum fruto ou flor, uma que fosse,
mas fui andando e meu dia clareou-se,
e então me deslumbrei com o que via.

Era um jardim com flores tantas, belas,
de olores que não pude compreender.
E havia as donas desse alvorecer,
regando as outras flores, quais estrelas.

Cheiro de gente, de suor, de beijos,
das duas moças ouviam-se os solfejos,
e delas vinha um mundo de fragrância.

Ah, como é lindo se subir às ribas!
E é disto que se nutrem os escribas,
e que os poetas cantam sua infância.

MINHA  LUZ
                                                

Muito gastei chorando... Eu era infante,
mas sorria também na idade mágica;
infância triste, sim, porém não trágica,
que me fazia um forte a cada instante.

Quando acordei do choro ante a verdade
e, enfim, por ver-me amado e não perdido,
risos mil fui construindo... E requerido
a subir,  eu subi a tempestade

adolescente!... E então rindo constante,
mudei de forma, alimentando a mente...
Eis-me, por fim, conquistador e amante.

E agora, bem melhor que antigamente,
sem sorrir nem chorar, vivo contente
a refletir-me em luz como um diamante.

LINGUAGEM VIVA
                             

Tudo neste universo se transforma,
Já dizia Camões, poeta da gente;
O frio se derrete pelo quente,
O calor sobe, esfria e toma forma.

Os homens fazem guerra pela paz
Porque n’alma resfria o sentimento,
Como na dor se aplaca o sofrimento
Pelos remédios que a ciência faz.

O rio seca, a mata é só fumaça,
O verde se reduz à luz do dia,
Eis que assim tudo passa, tudo passa.

Mas não passa o caminho de quem ama
Na lembrança do amado, pois é chama
Como a linguagem viva da poesia.

NÓS E O PLANETA
                             

Nascemos num oceano de incertezas,
São vidas sobre vidas, muitas vidas.
Que no combate até desconhecemos
Se são amigos nossos ou inimigos.

A ciência desvenda-nos perigos
De vírus a bactérias, faz vacinas
Contra os males fatais que nos imolam,
Pois somos nós os monstros. E sorrimos.

Também, com relação ao universo,
Somos futuros vírus já dispersos,
Na Terra, onde seremos os seus réus.

Fazemos, desta casa azul, um lixo...
Pensando (ou sem pensar) que com tudo isto
Estamos, corpo e alma, indo pro céu.


JANEIRO
                                                                    

Janeiro, enfim, colhe a primeira folha
Já pelas frinchas da manhã que vem,
Não sabe o que virá, não tem escolha,
Dirá amanhã:  a morte, o mal, o bem...

Não olha, com olhos doces, para  trás,
Nem sequer se arrepende de algum erro.
Mas vai, segue, danado como um perro,
Puxando o ano em tudo quanto faz.

Na alvorada, sozinho, só consigo,
Sem fama ou gloriolas pra contar,
Nascido forte, enfrentará o perigo.

Mas agora, na calma de quem ama,
Vendo, do dia, a clara, a acesa chama,
Confia e toca as bolas pra rolar.

GÊMEOS

                                                                    
Razão e sentimento – a contradança,
da natureza,  em seio feminino,
onde nascem  saber, suor, destino,
vida, tristeza, glória...  o que se alcança.

Porém, se um prato pende da balança,
se pesa mais razão que sentimento,
de Deus se quebra todo o pensamento
e o homem perde o estribo da esperança.

Sem os tons,  sem o ritmo dessa dança,
é quando a vida se transforma, ou cansa,
é quando a dor é luto... E  morre  a  paz.

Inseparáveis dons, duplas crianças
gêmeas no corpo, na alma e nas heranças,
se se separam, morem. Nunca mais!


CONTRA A TEORIA


Meus mestres do fazer por sentimento
me põem guardas contra as teorias,
de religiões, partidos, guerras frias,
quentes, mornas, e deuses...Que tormento!

Lendo o verbo, seus versos em poemas,
vindos de longe mas chegados cedo,
sem ter medo de ser, para que medo?
Humanidade, amor são nossos temas!

No mundo velho, o tudo é o tecer novo,
o melhor vem de nós e vem do povo,
porque, dizendo assim é que não minto.

E eu, sem acreditar em tanto aleijo,
descreio nas verdades que não vejo,
confio ao coração o que amo e sinto.

A VOZ DO FETO

                                      
Mamãe querida, tenha fé em Deus,
Não tome esse remédio que envenena,
Ainda sou pessoinha tão pequena,
Não me troque por vãos prazeres seus.

Respeite: a minha vida é sua vida,
Você pode ser boa e dar carinho,
Quando aí eu chegar com meu chorinho
Você se sentirá bem comovida.

Quando eu nascer serei a recompensa.
Ai, sou pequeno! E como defender-me?
Posso saber por que em mim não pensa?

Quero dormir, não ser expulso agora,
Não me possua qual se fosse um verme.
Só Deus nos diga: “Já chegou a hora!”


SUTILEZAS DO PRETO
                                      

Ninguém falou nem me escreveu ainda
do preto – as sutilezas e o sentido.
Serão verbais por existir o branco?
Ou o homem-natureza contradiz-se?

Da beleza e fealdade, qual o espírito?
A luz que vem do sol nos ilumina
O dia. E, à noite, então, por que esconder,
Dentro do escuro, as curvas e as esquinas?

Ser linhas sem contorno? Nesta vida,
Só existe a luz porque dois olhos temos,
Assim, as manchas negras nunca vistas.

Furos de negro, atrás dos olhos, vejam
O que há no mundo que nós nem sonhamos,
E o que perdemos na hora de nascer.

A LÍNGUA


                             
A língua portuguesa que falamos
palmilhou, no Brasil, ínvios caminhos,
ganhando mais bondades e carinhos,
debaixo deste sol que muito amamos.

Junto à mãe preta e junto à índia em flor,
o português saudoso em seu transporte,
aqui chegado do hemisfério norte,
pega brilho na voz,  nos olhos, cor.

Selvagem, forte, dúctil, na verdade,
rica e serena, triste na saudade,
franca nas decisões, porém com calma.

A língua portuguesa é, docemente,
a minha voz (e a de milhões de gente)
como parte profunda de minh’alma.


A COISA BRABA

                                      
Quando acordo e me vejo pelo espelho
do meu quarto, a  janela inda fechada,
nada do que já fui, nada do velho
me vem à frente. Onde  perdi a estrada?

Sinto-me preso a um  mundo que desaba,
sem graça, sem amor, sem segurança.
Não sei de onde é que vem a coisa braba,
se é por defeito meu, se é por vingança.

Tudo foge de mim. Onde está o homem?
O tórax sufocado pelo abdômen
e é tudo que me sobra do “eu” aflito.

Tento entender meus males, fecho o senho,
mas não sei por que diabos me contenho,
sem forças de gritar...Retenho o grito. 


SONETOS BRANCOS (1)

                             
Andei por outros ritmos altos, brancos,
No tempo em que as palavras me mordiam,
Porém  se foram com meus devaneios...
E a vida me  agarrou pelos cabelos.

Por rosto e carne, amor fui e voltei
Ao pecado do amor, na escuridão
Dos dias claros, fosse maio ou agosto,
Fosse praia ou inverno, vento ou calma.

O amor negou-me. Mas por que negar
Tranqüilidade, o bom humor, a luz,
Para vencer o que outros já venceram?

E eu reneguei-o então, só por vaidade,
Fui sozinho e mais triste que sozinho,
E me fiz, me desfiz em toda parte.

SONETOS BRANCOS (2)



Se sofri, se gozei, ninguém me aborda,
Que ninguém quer saber do amor alheio,
Nem do sabor dos beijos que, não dados,
Foram belas fatias noutros beijos.

O que vale é o desejo mais intenso,
Ou a paixão invisível que nos cega.
Que o mundo diga: “amigo, tu és tolo”,
Ninguém quer ter a morte sem peleja.

Das faltas, a lembrança viva e forte,
De vez em quando, rompe meus lençóis,
De verdade ou na pura indiferença.

Tantas vezes no sonho é que se vive,
Inventa e reinventa o ser feliz,
Mesmo depois de estarmos acordados.

SONETOS BRANCOS (3)
                                      

Branco é o linho e branca é a pureza,
E se eu sou branco, as cores não me atingem,
Negra, amarela, verde... No meu baile,
Todas dançam com a mesma sutileza.

Por dançar mal,  conheço, sou levado,
No vai-e-vem das buscas  atrasadas.
Quantas vezes, não minto, contrariando,
Porque, no descansar,  o gozo é ver-se!

Nada melhor que um riso feiticeiro,
Mesmo sem ter certeza pra onde vai...
Que alegria a pesar-lhe na cabeça!

Melhor nem pensar nisto e antegozar
O céu do amor num leito quente e fofo
Pondo  alvorada  em seus amanheceres.

POESIA? NÃO PERGUNTE


Não pergunte ao poeta, ele não sabe,
pois vive atormentado a procurá-la:
A melhor forma, a imagem que lhe fala,
e a natureza antes que o mundo acabe.

A flor, o inseto, o elefante, a ave...
E a criança que brinca e chora e cala
quando permitem bagunçar a sala...
Incerta é a poesia, incerta a nave.

Poesia! Consola os que não falam
e a saudade de amores que resvalam
buscando a triste paz de uma canção. 

Poesia! O saber luz na velhice
e, assim, no jovem que espargiu meiguice
levando amor e força ao coração.
                   


PROSOPAGNÓSICO


Não quero que me tenha como um pobre
Cheio de empáfia, longe, em devaneio.
Vejo tudo em você: cabelo e seio,
Orelha e brinco e a vestimenta nobre.

Foi ontem nosso abraço e a despedida,
Quando eu jurei guardar suas feições,
E um minuto depois, sem condições,
Não mais lembrava a face comovida.

Minha imaginação, que escreve e cria,
Tão sem dificuldade, quem diria,
Me esconde os traços de quem tanto gosto!

Isto explica por que minha carteira
Traz de frente sua foto de alma inteira:
Que eternamente eu possa ver seu rosto.


COMO SABER?

                   

Sou como a natureza, não me deixo
transformar por qualquer outro juiz;
não julgo nem condeno: - assim me quis.
Penso de mão na testa e não me queixo

Penso e resolvo o que me diz respeito
por dentro, não por fora, que é ilusão.
De que vale pintar “sim” sobre “não”?
De que vale mostrar o que é desfeito?

Previno-me de enganos aonde for...
Mas como vou saber se sou cativo,
da razão, se nasci só para o amor?

Como é que vou saber da minha sorte,
se me perco no mundo em que cultivo
razão e sentimento, vida, e morte?

SIGNOS E SONHOS


Eu sou aquele que jamais me entendem,
Mergulho em sonhos – douda fantasia,
Que me cala de amores, com magia:
Saudades do passado e do presente.

Sou pirilampo em noite inconsistente,
Quando ninguém espera – se faz dia,
Luz que cega, depois mostra o caminho
Na escuridão do poema que alivia.

Vôo sozinho sobre os tetos, vôo
Mais ligeiro que as asas do avião,
Pensando em nada, salvo um paraíso.

Sou céu distante e céu inexistente,
Sou palavra que cria e me dá tempo
De ver o chão dos signos onde piso.

PRESENÇA ANTIGA


Lembrando aquele sonho que me vela,
as memórias escrevo... E, de repente,
desce-me ao peito anúncios de procela,
pisando leve pra não me acordar.

Com lágrimas, revejo uma aquarela
branca e vermelha de quem vibra e sente
É que o amor jamais me dava trela,
rugia sexo além do verbo amar.

Dentro de mim pulsava uma donzela,
tão simples, num vestido de chitinha
a dançar e dançar no corpo dela.

E um cheiro que não sei donde é que vinha...
Oh, que gostosa  juventude eu tinha!
Era a doce presença de Arabela!

SEM VEZ NEM VOZ


Essa tristeza que me bate agora,
indiferente a tantas alegrias
que já gozei por muitos, muitos dias,
não acredito que existisse outrora.

Como foi que perdi o sono e a hora,
porque me viro e mexo em noites frias
ou quentes. Donde vêm as agonias
deste invisível mal que me devora?

Essa tristeza mata-me as vaidades,
os traços familiares e as herdades,
tudo o que ontem fui de bom ou ruim.

É assim que se morre pouco a pouco,
sem ouças, sem visão, ai que sufoco!
Cadê fala?... E sem voz se chega ao fim.
___________________
*Francisco Miguel de Moura, poeta brasileiro, mora no Piauí.

A CASA E O POETA

  Francisco Miguel de Moura, autor destas 50 joias
           

A casa do poeta  tem por via

a fala dos irmãos com outro irmão;
de uma vida coberta de  paixão,
as confissões: tristeza ou alegria.

É um menino pequeno (como não?)
no que quis e jamais pôde alcançar,
que  sofre  tantas  vezes  por amar,
quantas vezes num choro sem razão.

De medo, treme à vista do vizinho,
pois no quintal dos fundos grita e freme
um diabo nu, barrando o seu caminho.

Diante de Deus e de Nossa Senhora,
pede conformação para quem geme...
E não terá sua casa onde não mora.
                     

AMOR, SEMPRE AMOR (1)


 

Eras tu a mais linda da cidade.

E eu cheguei, um matuto impertinente,
apelidado até de inteligente
por colegas, amigos na verdade.

Teus sorrisos me enchiam de vaidade
e àqueles que te tinham de inocente,
e a mim me enfeitiçaram de repente,
como ninguém calcula. Ninguém há de

saber o que lutei para ganhar-te,
para querer-me ali, e em qualquer parte,
e, enfim, nos enlaçarmos com ardor.

Fogo em que conservamos, te asseguro,
a minha felicidade e o teu futuro
para viver tão puro e santo amor.

AMOR, SEMPRE AMOR (2)


                   

Mudam-se tempos, vidas e pesares,

mas, como outrora, a amar continuaremos.
Amo-te mais, não queiras nem saber,
amas-me mais agora e como sempre.

Se outrora caminhamos de mãos dadas,
era o medo do mundo e suas garras.
Já hoje nos soltamos pra andar juntos,
pra mais amar, que o nossa amor se aclara.

Teu corpo de menina e de mulher
Que tanto outrora já me deu ciúmes,

Hoje é prazer e graça como nunca.


Sendo eu feio, invulgar, e tu, tão bela

formamos lindo par por toda a vida
e abraçaremos outras se inda houver.

DEUSA


Era uma deusa humanamente bela,
de olhos molhados a deitarem luz,
sobre perdidos corações sem cores.
Desprendia paixões nos seus encantos.

Da carne, o cheiro, a tepidez, o orvalho
eram pingos da tarde... E a noite vinha.
Mas o brilho dos olhos tão intenso
iluminava  todos os caminhos.

E eu disse  “tolo”!  à blusa que se abria
à brisa, que assanhava as mentes frias,
cheia da graça dos recantos da alma.

De repente,  nas asas dos seus braços
levado vi-me e, pelos céus abertos,
caírem penas pelos meus pecados.
A DESCIDA

              
Quantos anos que gente sobe a vida
pensando que subiu, cresceu, mudou,
a enganar-se na festa e na bebida,
pra ignorar o mundo – este robô!

Vive-se o tempo.  E as horas consumidas
em vãos gozos e gulas, sem fronteiras,
desconhecem as dores e as mentiras,
e o fumo das batalhas derradeiras.

Ninguém espreita a onda dos mistérios,
da doença e da velhice, e o conteúdo
pra encarar  sem máscara seus impérios.

A lei da morte apaga amor, carinhos,
porque o tempo de Deus ficou desnudo
na cruel desesperança dos caminhos.


A DEUSA NUA




Vi uma deusa solitária e nua,
a correr pelas praias. Seu segredo
era o silêncio. Eu quase senti medo
daquela cor de prata, cor de lua.

Corri para apanhá-la, ainda era cedo!
Com vergonha de mim, vindo da rua
tão faminto e cansado. E ela recua...
“Se deusa for”, gritei, “vou ficar quedo”.

E ela correu de novo... E, atrás, perdido,
desesperado, eu, louco e comovido,
queria o mel dos lábios cor de beijos.

Cego e surdo, ante aquela formosura,
seio pulsante, o’ estranha criatura!... 
Caí morrendo a morte dos desejos.

A PARTIDA

 

 

Na partida os adeuses, gume e corte

dos prazeres do  amor, quanto tormento!
Cada qual que demonstre quanto é forte,
lábios secos mordendo o sentimento.

Do ser brotam soluços a toda hora,
as faces no calor do perdimento,
olhos no chão, no ar, por dentro e fora,
pedem aos céus a força e o alimento.

Ninguém vai, ninguém fica. Oh! se reparte
no transporte que  liga e que desliga!
Confusão de saber quem fica ou parte.

Não se explica tamanha intensidade

Amarga, e doce, e errante, que interliga
os corações perdidos de saudade.


AS COISAS QUE...



Passo a limpo os guardados, vejo a capa
de um livro de poemas que me  roeu
por ter nele o meu rosto!... Olho-o, à socapa,
tentando deslembrar quem era eu.

O mundo é diferente em cada etapa,
e a gente nem percebe que sofreu.
Já não quero  sequer buscar, no mapa,
a alma, o sonho onde ela se perdeu.

Como senti-me mal  naquele dia!
Mas me guardei daquela coisa fria
pra me esquecer, enfim, que fui um jovem.

Por que perder meu tempo em desmazelo?
Se o passado morreu já não é belo,
quero o presente e as coisas que nos movem.

CAMINHANTE



                   
No início, para trás eram meus passos,
mesmo assim alcancei quem se atrasou
mais do que eu, quem nada me escutou.
Meus pés doíam presos a alguns laços...

De rosto, a olhar em volta do ocidente,
jamais ouvi um som de voz alheia,
sem ver minhas pegadas pela areia,
a curtir um passado inconseqüente. 

 

Fiz pecados tão poucos, rezei tudo.

Cansado de falar me tornei mudo,
de tanto acreditar fiquei descrente.

Atrasei-me de amor pelo vizinho,
mas descobri, agora, que sozinho
ainda posso dar passos para frente.


DA VIDA E DA MORTE
                   

Há quem busque esta vida noutra vida,
e são felizes recriação da morte.
E quem encontre a vida na antemorte,
e são felizes plenamente em vida.

Por que preocupar-se com a tal morte,
se ela vem no seu tempo como a vida,
ou depois. E se o ente está sem vida,
logo o engana e faz dele vida e morte?

Há quem, afadigado pela vida,
transforme a vida-vida em vida-morte
e passe uma existência sem ter vida.

E os que só vivem dissecando a morte
pra saber se depois da vida há vida,
ou se depois da morte tudo é morte.

DESENCONTRO (1)

                   

Tomado de saudade e sofrimento,
um dia eu quis rever a terra amada.
sondei a posição varia do vento
e pus meus olhos e meus pés na estrada.

Noite ainda (acordei de madrugada),
tinha a lua por luz, por seguimento...
Nem sentia o cansaço da jornada,
pensando no ontem, no hoje, como alento.

Me alegrava pisar velhos caminhos!
Os pássaros contavam nos deus ninhos
e a natureza toda, então, sorria.

Ouvi tocar o sino em minha aldeia,
lembrei das orações na hora da ceia
e da casa que outrora me acolhia.

DESENCONTRO (2)


Fui devagar, pois, afinal, queria
gozar a sensação de uma beleza
que me ficara intacta, à alma presa,
bem distante da atual selvageria.

Meus olhos, percorrendo a redondeza,
iam matando as sombras sem valia,
cheio de força, o copo estremecia,
e de calor e luz... Longe a tristeza.

Era um quadro tão belo e tão feliz,
do qual jamais pudera ser juiz...
Porém, quando cheguei: - “Que coisa alheia!”

– exclamei. A montanha era mais baixa,
a igreja velha, o sino rouco, e a faixa
de rua era tão feia... Era tão feia!...
DESENCONTRO (3)
                   

Vi que o tempo não poupa, tudo encaixa,
mexe na minha vida e faz sua teia...
O sangue virou gelo em minha veia,
a pressão, que me era alta, se  rebaixa.

Luz se havia era  pouca., e de candeia,
no breu da noite... E não havia caixa
de banco... Nem  rapaz e nem muchacha...
Deserta de homem, de mulher, a aldeia.

Então, pergunto a mim: Qual o destino,
se vim buscar aqui meu ser menino
e menino nenhum aqui encontro?

Vim rever minha terra e  meu passado.
Mas, o que  vejo? - Um sonho naufragado...
E eu perdido num louco desencontro!

EM DUAS RIMAS



A vida nasce numa enorme festa,
Nasce do amor, no instante da folia
Do sexo, da paixão e da alegria.
Mas também chora, a vida é uma floresta.

Há confusões. Porém sobra uma fresta
Por onde socorrer-se na agonia,
Dá passagens na busca de harmonia.
Há morte e vida e luzes nessa gesta.

Há buscas ideais, filosofia...
Indagações: – Meu Deus, que coisa é esta?
O amor a transformar-se em poesia.

E assim morrer: – Cantando uma seresta,
Ou ir sorrindo para uma outra festa
É o fim que todo homem gostaria.

EMOÇÕES


         
Só tenho olhos pra aquilo que me nega,
só sinto o cheiro e a fala  de outras  vinhas,
mais me apetece o rosto que as covinhas,
e em mim a luz é sombra e se me integra.

Se há gosto em minha boca, não me pega,
mas se meu corpo alisam –  coisa minha –,
meu passado sofrido se esfarinha
e a nuvem interior se desintegra.

A natureza, em mim, vem da floresta.
Gosto do vento a arrepiar a testa,
gosto de rir... Mas como rir primeiro?

Vivo tão sério! Não, de mim não riam,
se as emoções mais tolas me aliviam:
- São pérolas que dôo ao mundo inteiro!

ENIGMA-MULHER

                             
Ontem mangas voaram... Tão distante!
Saias também subiram pelas pernas
bem torneadas. E as mamas lindas, ternas,
se entremostraram... descobrindo avante. 

Hoje, a bermuda é moda até demais
eis que decente, encurta sem temor,
mostra o bucho, o embigo, e em seu redor
ficam léguas de frente e légua atrás.

Que lhe faltou: vergonha ou vestuário?
Pernas, seios, sovacos... Um estuário
de entrância e reentrância é quanto salva.

Mas inda falta descobrir-se. Quer?
– As curvas caprichosas da mulher,
lá nos desvãos escuros de sua alma.

GOZO EXTENSO


Gozo os segundos todos, ano a ano,

do que ainda me resta por saúde,
não me entristece olhar o que não pude
ser. E dos meus achaques não me ufano.

No que fiz e refiz, por ser humano,
injetei muitas gotas de bondade.
Pela essência da calma que me invade,
sou a esperança no que não me engano.

E em tudo a fortaleza me aclareia
como os gozos de outrora... Tão intenso
é o meu prazer e minha nova messe.

No momento outro sonho é que me enleia:
- O encanto de saber que estou imenso,
num coração que, enfim, rejuvenesce.

MÁRTIR

 


De que serve contar já tantos anos

de vida, se a verdade foge e foge,
o ontem nunca mais tornando ao hoje,
e o amanhã  tão perto, e  seus enganos?

Não me valeram experiência e danos
que as primaveras fúteis produziram,
se, em  lugar de saudades, me surgiram
só lembranças inúteis, desenganos...

De que posso, vaidoso, me gabar

senão da arte, em saber ouvi-la e vê-la,
embora não me leve a qualquer parte?

Ora, bem! Zombarei do grande azar
de ter nascido em Vênus, bela estrela,
pra fazer vida no planeta Marte.

MINUTO ETERNO

                                      


Deitada é bela, e, se levanta, estua:
Sinal de cio... Fecha os olhos, pensa?...
Como, então, me darei a recompensa
de mais de perto vê-la inda mais nua?

Voar ao prédio em frente desta rua
e surpreendê-la em sua displicência?
Perder todo este medo e a paciência
de anjo sem paz que sabe e não flutua?

Vou morrer de ciúme aqui, de longe,
por não tê-la sequer um só segundo,
por delirar, na posição de monge.

Se fosse minha um só minuto – eterno–­,
zombaria das glórias deste mundo
e trocaria os céus por todo o  inferno.

VOYER
(Segunda versão de “Minuto Eterno”)

Seminua, deitada, insone e quente,
no sofá, fecha os olhos, pestaneja...
Ah, eu queria ter cometimentos
pra mais de perto vê-la, vê-la, vê-la!

Voar deste meu prédio lá, na frente,
tocar seu corpo em toda a displicência...
Ai, não posso! E com isto me entristeço
como um anjo incapaz, louco e doente.

Tenho ciúmes, sim, no longe-e-perto.
Vejo um inseto pousado no seu peito
quando aqui morro em posição de feto.

Se fosse minha por um dia apenas
seria o homem mais feliz do mundo,
renegaria os deuses do universo.

O FANTASMA


                             
Quem lhe matou a vida de menino
e a tão sonhada vida de rapaz?

Não sabe, está perdido e vai atrás

do perdido nos becos do destino.

Entre os deuses e o diabo, oh desatino!
de desistir ninguém o fez capaz.
Foi buscando vitória sem ter paz,
sem vislumbrar seu ser em pequenino.

Mesmo assim,  sob os gritos de revolta,
luta fria e ferozmente atrasado...
Só que um dia o fantasma a si se volta.

E renasce uma imagem tão candente
que o leva a gargalhar de toda gente,
no sorriso feliz de um só pecado.

O QUE MORRE


                             

Casa e caminhos morrem desamados,

esquecidos, na solidão do amém.

Os segredos falecem de guardados,
e amores morrem quando morre alguém.

O porto morre, a onda se esvazia,
e o sonho esvai-se quando acorrentado,
e treva nasce do morrer do dia.
Vão-se o rico, o feliz e o desgraçado.

Nada é perene, pois quem nasce vibra
somente um instante para a queda enorme,
eis que essa lei fatal tudo equilibra.

Morrem lembranças, fruto do passado,
e o presente e o futuro quando dorme
o homem sem fé, sem luz, abandonado.


OCEÂNICA

                   
                                      

Na partida, um  oceano  de revolta

cala meu peito em descontentamento.
– Vais aonde? – eu  pergunto – onda  tão solta? 
E ela me corta o coração  por dentro.

Sou areia, sou rocha e, em meu tormento,
choro e declamo, e o fogo me devora;
qual vulcão que nos mostra o epicentro,
outro vulcão me nasce aqui por fora.

Na partida, eu prometo consolar-me
do vácuo que me tolhe. E, sem alarme,
no amor a Deus apenas me concentro.

Meu mundo é solidão, é só  saudade
de quem levou minha tranqüilidade,
de quem  partiu meu coração por dentro.

SOMBRA


Minha sombra soçobra no que flui,
No horizonte de um deus fendido em dois:
– O futuro, do qual se foge em “ui”!
E o passado das noites e dos sóis.

Aquele vem de pé, mas tão veloz
Quanto o outro não foge – e como influi!
Um é terrível santo e tão sem voz,
O outro, deus e o diabo... E a carne rui.

Já não banco o santinho nem o herói,
Embora herde, dos dois, olhos azuis
E haja chorado à treva e à cor que dói.

Já não tenho esperança numa foz
De doçura e de amor que a amor conduz.
Minha sombra soçobra em caracóis.


PERFUME E COR



Subi às ribanceiras desta via
sem nenhum fruto ou flor, uma que fosse,
mas fui andando e meu dia clareou-se,
e então me deslumbrei com o que via.

Era um jardim com flores tantas, belas,
de olores que não pude compreender.
E havia as donas desse alvorecer,
regando as outras flores, quais estrelas.

Cheiro de gente, de suor, de beijos,
das duas moças ouviam-se os solfejos,
e delas vinha um mundo de fragrância.

Ah, como é lindo se subir às ribas!
E é disto que se nutrem os escribas,
e que os poetas cantam sua infância.

SINGULAR


É singular criatura. Das pequenas
E grandes porque reina (não são teses),
A conduzir, no bucho, longos meses,
O filho – em seu olhar, carícias plenas.

Mais do que isto: a mãe limpa-lhe as fezes,
Ganha de tudo onde sofrer é estima,
Deusa, abaixo de Deus ela só rima
Na proteção do infante. E morre às vezes.

Pois que ela rege, em templo tão fecundo,
Um musical no ventre, o gineceu,
De onde viemos nós, não me confundo.

Depois de minha mãe, só eu, sou eu...
Mãe, o’ mães, porque há tantas neste mundo
Resiste a humanidade, e não morreu.

TERNURA MIÚDA


                                      


Pelas coisas serenas me contenho
se ternamente nasçam da vontade,
do amor e do carinho, da bondade
daquilo que mais prezo e pouco tenho.

Venham doces carícias pelo vento,
beijar-me a sutil nuca que me impele
a estremecer e subir do imo à pele,
e bem voar pelo espaço em movimento.

Os pequeninos vidros mais perfume
têm  – que a filosofia não resume,
pois lhe falta ternura e tentação.

Nas invisíveis coisas me retiro,
nelas canto e me encanto e mais suspiro...
Todo o meu corpo é todo um coração.


ÚLTIMO OLHAR


Hora, afinal, de reconciliação

com os inimigos e os perseguidores,
sem alívio nenhum, trespassam dores...
Dos amigos? –  O amor e  a oração.

Como esquecer os gozos e a canção
da vida, o tempo em que teceu amores?
Vão colegas, vizinhos! Vãos clamores,
diante do horror dessa consternação.

Quero ligar-me a Deus, já na partida,
pra suportar o triste dos presentes,
numa clara humildade aborrecida...

Ah, recebo os divinos, santos óleos
e o pesar da mamãe e dos parentes,
com teu olhar por dentro dos meus olhos.

VELHAS PRAIAS




As velhas praias... Que saudade delas,
Do nosso idílio em dias juvenis:
- Uma moça e um rapaz banhando nelas,
Sem roupas, sem segredos, sem ardis.

Almas voando... Ai, como o tempo voa
Nas palmeiras cantando... Porque o vento
Entre arrepios no horizonte ecoa
Atento ao som, à luz, ao movimento.

Almas e corpos que amam são a messe,
São a chama, a pureza, são a prece
Que se eleva do mundo ao Criador.

No sul, no norte, as praias são lembranças
Do tempo em que conosco as esperanças
Eram certezas como o nosso Amor.

O ÚLTIMO BEIJO

Uma deusa te pega pela mão

contra inimigos e perseguidores,
abre o seio do leite dos amores,
e começa a tua fé no coração.

Os olhos dela encantam, na canção
da vida é tempo de tecer as cores,
e os amigos, e os campos e as flores,
diante dum palco de contradição.

O tempo vai passando em grande lida,
te envelheces, te cansas na subida,
e a glória alcançarás entre os escolhos.

A hora, enfim lhe chega, da partida,
banhado em pranto e d’alma recolhida,
 um rosto de mulher beija teus olhos.

PERFUME E COR



Subi  às ribanceiras desta via
sem nenhum fruto ou flor, uma que fosse,
mas fui andando e meu dia clareou-se,
e então me deslumbrei com o que via.

Era um jardim com flores tantas, belas,
de olores que não pude compreender.
E havia as donas desse alvorecer,
regando as outras flores, quais estrelas.

Cheiro de gente, de suor, de beijos,
das duas moças ouviam-se os solfejos,
e delas vinha um mundo de fragrância.

Ah, como é lindo se subir às ribas!
E é disto que se nutrem os escribas,
e que os poetas cantam sua infância.

MINHA  LUZ
                                                

Muito gastei chorando... Eu era infante,
mas sorria também na idade mágica;
infância triste, sim, porém não trágica,
que me fazia um forte a cada instante.

Quando acordei do choro ante a verdade
e, enfim, por ver-me amado e não perdido,
risos mil fui construindo... E requerido
a subir,  eu subi a tempestade

adolescente!... E então rindo constante,
mudei de forma, alimentando a mente...
Eis-me, por fim, conquistador e amante.

E agora, bem melhor que antigamente,
sem sorrir nem chorar, vivo contente
a refletir-me em luz como um diamante.

LINGUAGEM VIVA
                             

Tudo neste universo se transforma,
Já dizia Camões, poeta da gente;
O frio se derrete pelo quente,
O calor sobe, esfria e toma forma.

Os homens fazem guerra pela paz
Porque n’alma resfria o sentimento,
Como na dor se aplaca o sofrimento
Pelos remédios que a ciência faz.

O rio seca, a mata é só fumaça,
O verde se reduz à luz do dia,
Eis que assim tudo passa, tudo passa.

Mas não passa o caminho de quem ama
Na lembrança do amado, pois é chama
Como a linguagem viva da poesia.

NÓS E O PLANETA
                             

Nascemos num oceano de incertezas,
São vidas sobre vidas, muitas vidas.
Que no combate até desconhecemos
Se são amigos nossos ou inimigos.

A ciência desvenda-nos perigos
De vírus a bactérias, faz vacinas
Contra os males fatais que nos imolam,
Pois somos nós os monstros. E sorrimos.

Também, com relação ao universo,
Somos futuros vírus já dispersos,
Na Terra, onde seremos os seus réus.

Fazemos, desta casa azul, um lixo...
Pensando (ou sem pensar) que com tudo isto
Estamos, corpo e alma, indo pro céu.


JANEIRO
                                                                    

Janeiro, enfim, colhe a primeira folha
Já pelas frinchas da manhã que vem,
Não sabe o que virá, não tem escolha,
Dirá amanhã:  a morte, o mal, o bem...

Não olha, com olhos doces, para  trás,
Nem sequer se arrepende de algum erro.
Mas vai, segue, danado como um perro,
Puxando o ano em tudo quanto faz.

Na alvorada, sozinho, só consigo,
Sem fama ou gloriolas pra contar,
Nascido forte, enfrentará o perigo.

Mas agora, na calma de quem ama,
Vendo, do dia, a clara, a acesa chama,
Confia e toca as bolas pra rolar.

GÊMEOS

                                                                    
Razão e sentimento – a contradança,
da natureza,  em seio feminino,
onde nascem  saber, suor, destino,
vida, tristeza, glória...  o que se alcança.

Porém, se um prato pende da balança,
se pesa mais razão que sentimento,
de Deus se quebra todo o pensamento
e o homem perde o estribo da esperança.

Sem os tons,  sem o ritmo dessa dança,
é quando a vida se transforma, ou cansa,
é quando a dor é luto... E  morre  a  paz.

Inseparáveis dons, duplas crianças
gêmeas no corpo, na alma e nas heranças,
se se separam, morem. Nunca mais!


CONTRA A TEORIA


Meus mestres do fazer por sentimento
me põem guardas contra as teorias,
de religiões, partidos, guerras frias,
quentes, mornas, e deuses...Que tormento!

Lendo o verbo, seus versos em poemas,
vindos de longe mas chegados cedo,
sem ter medo de ser, para que medo?
Humanidade, amor são nossos temas!

No mundo velho, o tudo é o tecer novo,
o melhor vem de nós e vem do povo,
porque, dizendo assim é que não minto.

E eu, sem acreditar em tanto aleijo,
descreio nas verdades que não vejo,
confio ao coração o que amo e sinto.

A VOZ DO FETO

                                      
Mamãe querida, tenha fé em Deus,
Não tome esse remédio que envenena,
Ainda sou pessoinha tão pequena,
Não me troque por vãos prazeres seus.

Respeite: a minha vida é sua vida,
Você pode ser boa e dar carinho,
Quando aí eu chegar com meu chorinho
Você se sentirá bem comovida.

Quando eu nascer serei a recompensa.
Ai, sou pequeno! E como defender-me?
Posso saber por que em mim não pensa?

Quero dormir, não ser expulso agora,
Não me possua qual se fosse um verme.
Só Deus nos diga: “Já chegou a hora!”


SUTILEZAS DO PRETO
                                      

Ninguém falou nem me escreveu ainda
do preto – as sutilezas e o sentido.
Serão verbais por existir o branco?
Ou o homem-natureza contradiz-se?

Da beleza e fealdade, qual o espírito?
A luz que vem do sol nos ilumina
O dia. E, à noite, então, por que esconder,
Dentro do escuro, as curvas e as esquinas?

Ser linhas sem contorno? Nesta vida,
Só existe a luz porque dois olhos temos,
Assim, as manchas negras nunca vistas.

Furos de negro, atrás dos olhos, vejam
O que há no mundo que nós nem sonhamos,
E o que perdemos na hora de nascer.

A LÍNGUA


                             
A língua portuguesa que falamos
palmilhou, no Brasil, ínvios caminhos,
ganhando mais bondades e carinhos,
debaixo deste sol que muito amamos.

Junto à mãe preta e junto à índia em flor,
o português saudoso em seu transporte,
aqui chegado do hemisfério norte,
pega brilho na voz,  nos olhos, cor.

Selvagem, forte, dúctil, na verdade,
rica e serena, triste na saudade,
franca nas decisões, porém com calma.

A língua portuguesa é, docemente,
a minha voz (e a de milhões de gente)
como parte profunda de minh’alma.


A COISA BRABA

                                      
Quando acordo e me vejo pelo espelho
do meu quarto, a  janela inda fechada,
nada do que já fui, nada do velho
me vem à frente. Onde  perdi a estrada?

Sinto-me preso a um  mundo que desaba,
sem graça, sem amor, sem segurança.
Não sei de onde é que vem a coisa braba,
se é por defeito meu, se é por vingança.

Tudo foge de mim. Onde está o homem?
O tórax sufocado pelo abdômen
e é tudo que me sobra do “eu” aflito.

Tento entender meus males, fecho o senho,
mas não sei por que diabos me contenho,
sem forças de gritar...Retenho o grito. 


SONETOS BRANCOS (1)

                             
Andei por outros ritmos altos, brancos,
No tempo em que as palavras me mordiam,
Porém  se foram com meus devaneios...
E a vida me  agarrou pelos cabelos.

Por rosto e carne, amor fui e voltei
Ao pecado do amor, na escuridão
Dos dias claros, fosse maio ou agosto,
Fosse praia ou inverno, vento ou calma.

O amor negou-me. Mas por que negar
Tranqüilidade, o bom humor, a luz,
Para vencer o que outros já venceram?

E eu reneguei-o então, só por vaidade,
Fui sozinho e mais triste que sozinho,
E me fiz, me desfiz em toda parte.

SONETOS BRANCOS (2)



Se sofri, se gozei, ninguém me aborda,
Que ninguém quer saber do amor alheio,
Nem do sabor dos beijos que, não dados,
Foram belas fatias noutros beijos.

O que vale é o desejo mais intenso,
Ou a paixão invisível que nos cega.
Que o mundo diga: “amigo, tu és tolo”,
Ninguém quer ter a morte sem peleja.

Das faltas, a lembrança viva e forte,
De vez em quando, rompe meus lençóis,
De verdade ou na pura indiferença.

Tantas vezes no sonho é que se vive,
Inventa e reinventa o ser feliz,
Mesmo depois de estarmos acordados.

SONETOS BRANCOS (3)
                                      

Branco é o linho e branca é a pureza,
E se eu sou branco, as cores não me atingem,
Negra, amarela, verde... No meu baile,
Todas dançam com a mesma sutileza.

Por dançar mal,  conheço, sou levado,
No vai-e-vem das buscas  atrasadas.
Quantas vezes, não minto, contrariando,
Porque, no descansar,  o gozo é ver-se!

Nada melhor que um riso feiticeiro,
Mesmo sem ter certeza pra onde vai...
Que alegria a pesar-lhe na cabeça!

Melhor nem pensar nisto e antegozar
O céu do amor num leito quente e fofo
Pondo  alvorada  em seus amanheceres.

POESIA? NÃO PERGUNTE


Não pergunte ao poeta, ele não sabe,
pois vive atormentado a procurá-la:
A melhor forma, a imagem que lhe fala,
e a natureza antes que o mundo acabe.

A flor, o inseto, o elefante, a ave...
E a criança que brinca e chora e cala
quando permitem bagunçar a sala...
Incerta é a poesia, incerta a nave.

Poesia! Consola os que não falam
e a saudade de amores que resvalam
buscando a triste paz de uma canção. 

Poesia! O saber luz na velhice
e, assim, no jovem que espargiu meiguice
levando amor e força ao coração.
                   


PROSOPAGNÓSICO


Não quero que me tenha como um pobre
Cheio de empáfia, longe, em devaneio.
Vejo tudo em você: cabelo e seio,
Orelha e brinco e a vestimenta nobre.

Foi ontem nosso abraço e a despedida,
Quando eu jurei guardar suas feições,
E um minuto depois, sem condições,
Não mais lembrava a face comovida.

Minha imaginação, que escreve e cria,
Tão sem dificuldade, quem diria,
Me esconde os traços de quem tanto gosto!

Isto explica por que minha carteira
Traz de frente sua foto de alma inteira:
Que eternamente eu possa ver seu rosto.


COMO SABER?

                   

Sou como a natureza, não me deixo
transformar por qualquer outro juiz;
não julgo nem condeno: - assim me quis.
Penso de mão na testa e não me queixo

Penso e resolvo o que me diz respeito
por dentro, não por fora, que é ilusão.
De que vale pintar “sim” sobre “não”?
De que vale mostrar o que é desfeito?

Previno-me de enganos aonde for...
Mas como vou saber se sou cativo,
da razão, se nasci só para o amor?

Como é que vou saber da minha sorte,
se me perco no mundo em que cultivo
razão e sentimento, vida, e morte?

SIGNOS E SONHOS


Eu sou aquele que jamais me entendem,
Mergulho em sonhos – douda fantasia,
Que me cala de amores, com magia:
Saudades do passado e do presente.

Sou pirilampo em noite inconsistente,
Quando ninguém espera – se faz dia,
Luz que cega, depois mostra o caminho
Na escuridão do poema que alivia.

Vôo sozinho sobre os tetos, vôo
Mais ligeiro que as asas do avião,
Pensando em nada, salvo um paraíso.

Sou céu distante e céu inexistente,
Sou palavra que cria e me dá tempo
De ver o chão dos signos onde piso.

PRESENÇA ANTIGA


Lembrando aquele sonho que me vela,
as memórias escrevo... E, de repente,
desce-me ao peito anúncios de procela,
pisando leve pra não me acordar.

Com lágrimas, revejo uma aquarela
branca e vermelha de quem vibra e sente
É que o amor jamais me dava trela,
rugia sexo além do verbo amar.

Dentro de mim pulsava uma donzela,
tão simples, num vestido de chitinha
a dançar e dançar no corpo dela.

E um cheiro que não sei donde é que vinha...
Oh, que gostosa  juventude eu tinha!
Era a doce presença de Arabela!

SEM VEZ NEM VOZ


Essa tristeza que me bate agora,
indiferente a tantas alegrias
que já gozei por muitos, muitos dias,
não acredito que existisse outrora.

Como foi que perdi o sono e a hora,
porque me viro e mexo em noites frias
ou quentes. Donde vêm as agonias
deste invisível mal que me devora?

Essa tristeza mata-me as vaidades,
os traços familiares e as herdades,
tudo o que ontem fui de bom ou ruim.

É assim que se morre pouco a pouco,
sem ouças, sem visão, ai que sufoco!
Cadê fala?... E sem voz se chega ao fim.
___________________
*Francisco Miguel de Moura, poeta brasileiro, mora no Piauí.

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