segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A VIDA COMEÇA NUM BURACO - Crônica




Francisco Miguel de Moura
Escritor, da APL



Meus tios Joaquim e Otaviano, que eram os mais novos, cavaram um buraco na terra molhada, em frente à casa de meu avô materno, àquele tempo já falecido. Não os vi cavando. Quando saí para o terreiro, o buraco estava à minha espera.
Minha idade, não sei. Calculo em 4 ou 5 anos, que é de quando a gente começa a gravar o que se passa de importante em redor de si.
Nossa memória é seletiva, grava momentos ou fatos pela emoção, pelo sentimento que desperta, por outras razões desconhecidas que até hoje procuro descobrir.
Aquele buraco de minha meninice é um marco importante na minha vida. Sempre que ponho os olhos para trás, ele me persegue. É como se alguém sempre me estivesse advertindo:
- Olhe o buraco, Chico! Cuidado!
Os dois me pegaram pelo sovaco, um de um lado, outro do outro, e me colocaram dentro.
- Agora, saia daí, seu danadinho!
Qual a fundura, não sei. Do alto dos meus 64 quatro anos, ou seja, 60 anos depois, a perspectiva que tenho é de que o chão, fora do buraco, ficava acima de minha cabeça qualquer coisa como um palmo. Quando a gente é criança os objetos, as pessoas, as paisagens nos parecem deslumbrantes, assombradoras, grandes demais para o nosso alcance. É assim que vou dar um desconto e dizer que o buraco era menor que o meu medo. Medo de não sair de dentro. Senti que não tinha condição de sair, por mim mesmo, daquele fosso. Na verdade, os buracos da vida são assim: não temos condição de sair deles sem ajuda. O homem é um animal muito fraco. Começa com o nascimento. Vem a parteira ajudar a mãe e o filho. Daí, até a gente poder andar por suas próprias pernas, temos os nossos pais, nossos irmãos mais velhos, primos, tios, vizinhos, amigos a nos socorrerem.
Acredito que meus tios quiseram me pôr à prova.
- «Este menino malino agora vai ver...» - devem ter pensado.
Eles riam a valer. Será que eu tinha feito algo errado para que me castigassem daquele jeito? Se era brincadeira, nunca vira brincadeira tão besta.
Chorei, gritei por mamãe. Ela não me acudiu, devia estar distante.
Tiraram-me. Não me lembro bem como nem quando me tiraram de lá. Só vejo o buraco e o sufoco de como me levaram pra dentro, sem explicação.
Naquele tempo, contavam-se muitas histórias de tesouros encantados. Assim. Os ricos guardavam seu dinheiro debaixo do chão, para não serem roubados. Mas o pecado de sua avareza era castigado. Quando procuravam de novo, necas, as patacas de ouro e prata haviam desaparecido. Só quando morriam, suas almas penantes falavam aos bons cristãos, através de sonhos, e pediam que fossem desenterrar o tesouro. Ensinavam como devia ser: de noite, sozinho, rezando, sem maldade, senão o demônio vinha atrapalhar, e o dinheiro transformar-se-ia em abelhas ou formigas.
Então, esse buraco de minha primeira infância, bem que meus tios podem tê-lo encontrado pronto, de manhã, e, com medo, não o entupiram logo. Seria de alguém que recebeu recado de uma alma e ali encontrara o tesouro - dinheiro enterrado. É que aqueles buracos, segundo a tradição, não deveriam ser entupidos pela pessoa que desenterrava a fortuna.
Como estava bem de frente com a «latada» da casa de meu avô, quase no meio da estrada, talvez fosse vestígio do seu pecado. Ele, então, acabava de ser salvo. Por respeito...
Não. Não teria sido de meu avô materno, nem de minha avó, que eram pobres. Não tinham dinheiro suficiente para enterrar. Isto minha mãe me contou depois.
Tudo o que alcanço hoje, com a memória, é que meus tios riam e eu chorava dentro do buraco, sem entender nada. Como ainda hoje não entendo.
Como ninguém me falou deste buraco, fica-me, assim, como uma representação do mundo original: um buraco!
A vida começa num buraco e termina noutro, depois de tantos anos - reflito.
Mas ela é tão gostosa que vivemos procurando entupir esse buraco.

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