Francisco Miguel de Moura
membro da Academia
Piauiense de Letras.
.
A última mensagem poética me chegou
anexa a uma carta-crônica datada de 13 de fevereiro de 1999, enviamento do
poeta piauiense/maranhense Chagas Val, que habita as plagas de São Luís do
Maranhão. Era um livro de poemas. Que
beleza! Fiquei alegre, não foi pra menos. Muito bonita a capa, a impressão
também recomendável, a orelha de Nauro Machado está excelente, creio que diz
tudo da poesia de Chagas Val hoje. Que é que posso acrescentar como
crítico? Muito pouco.
Agora, releio «Anatomia do Escasso
Cotidiano», o nome do livro de Chagas Val, e dá vontade de recitar uns versos:
«Brancura de água mal se nota que existe / que branco é o espaço escrito em
nuvens / ou uma garça pintando imóvel a paisagem. // Um peixe em movimento é
branco e limpo / e ele se banha ao luar de suas escamas / quando nada na
brancura de uma lâmina / ou de uma fina linha em branco silêncio.»
Depois vou pensando em bosquejar umas
idéias e observações. É um livro leve como um pássaro, não porque seja fino. E
é tão fino (nos dois sentidos) que o volume não chega a cem páginas e se lê
como o vento sopra, como a água flui nos rios da planície de Buriti dos Lopes,
sem pressa, enxugando a alma ao invés de
molhar, profundo sentir ver/ouvir/meditar. Branco como uma oração na sua
pureza. Cheio de símbolos simples e por isto mesmo difíceis de interpretação.
Não é necessário. Fruí-los já basta, é assim qual nublado silêncio, no
aconchego e paz de voz amiga.
Que sua poesia já não traz cheiro de
outro poeta, de nenhum corifeu, de nenhum mestre, é seguro. E me
tranqüiliza. A poesia de Chagas Val é.
Neste «Anatomia do Escasso Cotidiano» ele se faz originalíssimo. É difícil
segurar essa barra, acho até que
exagerou. Não deve tentar escrever (e publicar) um livro a cada ano, nem
de dois em dois anos, mas dar espaço de pelo menos quatro, para não esgotar-se
ou repetir-se.
As obras anteriores sempre vinham
polvilhadas de águas, rios, luas e ventos. Mas na nova messe os elementos se
depuram. A casa e o rio, as árvores e as folhas são tratadas como personagens
vivos e interferentes. Nauro Machado registrou isto, se não me engano, na
apresentação. Os campos da alma... A alma desvairada dos homens deste fim de
século, incluso o poeta, está perdida, solitária, no «escasso quotidiano». Melhor que escasso
seria escuro. Ou não? Mas como, se a
poesia de Chagas Val é inteira claridade?
Ecológico, o poeta? Sim, mas não só de
uma ecologia interna, depurada. E
ontológico também. E escatológico sem
dogma. E antológico sem dogma. E antológico, sim.
Há como que uma aura protegendo a
imagística do poema. Mudança de estilo? Nem tanto. Aprimoramento,
trabalho. E premonições do que
acontecerá, fatalmente, nas artes do próximo milênio. Não que haja
racionalismo, ou irracionalismo, como no tempo do neoclássico. Ao ler poemas
como «Rosa Contemplada» ou «As
Sanguíneas Flores», lembrei-me de Alvarenga Peixoto em «Ensanguentados rios,
quantas vezes / vistes os férteis vales / semeados de lanças e arneses?» Não que haja musas e entidades campestres
guiando o poeta e presidindo a poesia. Muito menos intenções de agradar os
poderosos do momento, com baladas e poemas. Os poderosos de hoje não dão bolas
pra isto, não se sensibilizam. Nem
pensar na ressurreição de um mundo pastoral. Eles querem um mundo virtual. Que
não seja poético. Há o «novo» e há novidade em sua poesia, é preciso descobrir logo.
Sobretudo, há sumo de cores e vozes, enquanto o bom leitor vai se enleando na
enchente de imagens e símbolos claros mas impenetráveis à primeira análise.
Sei que o poeta vive recluso, isolado
da sociedade dos mortos, pois só os poetas são vivos espiritualmente. Mas, para
sua integridade é perigoso produzir o novo sempre e sempre, porque os anseios
de libertação nunca chegam ao fim, vão num crescendo, crescendo, e
confrontam-se com as contradições vitais da natureza e da cultura humanas.
Brigam com a sociedade. Os prazeres verdadeiros são escassos, no mundo
pós-moderno, porque repetitivos. Haja sexo virtual, sem amor e sem liberdade,
sem frutos. É o Deus artificial dos cultos televisados. Festas são drogas. Mas o homem não vive sem prazer. Pense-se no
hoje. Que prazer haverá em passear num Shopping Center, olhando coisas, coisas
de plástico e papel que se trocam por papel-dinheiro podre, às vezes sem
necessidade, pois quase tudo é descartável? Depois se joga fora. E tudo é frio,
é máquina, é computador, é calculismo daqueles que manobram as massas em forma
«artística» de propaganda, ou estatística do «economês». Frio é o ardor do sol,
com tanto ar (condicionado) nos escritórios, nos hotéis, nas partes turísticas.
É esse «escasso quotidiano» que Chagas
Val abomina e por isto se revolta e se refugia no poema, na dor da poesia. Em
lindos poemas como «Os Arvoredos», «As Folhas», «Sutilezas» e
«Pássaros em Extinção», pra não falar no soneto «Alegria». Ótimo livro,
não adiantaria citar os melhores poemas, teria que referir todos. Nem há espaço
para mostrá-los.
Então terminemos com dois versos que me ficaram na memória, pois me
agradaram sobremaneira: «Uma rosa com
suas pétalas de luz e sangue / abre-se silenciosa na claríssima paisagem.» É a
poesia de Chagas Val, vista nas duas primeiras leituras de um amante da poesia.
Uma das belas coisas da vida.
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