domingo, 4 de janeiro de 2009

A CIDADE FANTASMA

Francisco Miguel de Moura*


O único vivente era ele. O trabalho há muito nos havia sido abolido sem eleição sem nada, como por vontade silenciosa da população. Sobrou um pobre pedinte que continuava sua vida de cachorro: Johanes.

– Nasci para semente, não vou morrer.

Porque nascera e vinha enganando a vida até ali. Magro, quase esquelético, olhos fundos, cabeça grande, orelhas de abano, cabelos compridos e desgrenhados, barba descendo os queixos em busca do umbigo. Por que esse nome? Seus pais eram estrangeiros, ou o tabelião quis dar uma de sabido. Todos os dias – começava madrugada alta – subia e descia a rua deserta. Antes Johanes nunca passava necessidade. Onde pedia era atendido – comida boa e não restos – mais calçados, sabão, pente, tesoura e uma faquinha. Ganhara a simpatia de alguém que, todos os meses, lhe vinha aparar o cabelo e a barba. A casa que Johanes ocupava não possuía espelho, água, mobília, sequer um banco onde sentar-se. Aquilo não era casa – uma loca.Mas vivia, como se diz hoje, “numa boa”.

Gente rica é complicada. Ele não precisava de muito para ser feliz. Aliás, nunca tinha pensado em ser feliz. Não tinha pensado em nada. Vivia. E era tudo.

Sempre há um dia azarento na vida de cada um. Começou recebendo visitas de algumas pessoas que lhe perguntavam como sobreviver. Era consciente:

– Mas de onde você veio? Aqui não há mendigos...

– Digamos que eu vim da Lua, mas vim para ficar.

Ah, era tão bom não possuir colegas! São tipos que só servem para bisbilhotar a vida alheia, complicados, alguns acham que são merecedores de tudo, que Deus foi ingrato, que o mundo não presta pra nada. E ainda querem que a gente fique mudando. Pouco a pouco outros foram chegando: era o padeiro que deixou de vender pão, desanimado com a alta do trigo; era o bodegueiro da esquina, que fechou sua loja de tanto vender fiado e nada receber; eram as fábricas de doce, de manteiga, de querosene, de sabão, que se fechavam. Dali foi só um passo para a onda de lavradores do campo, das vilas e das fazendas que chegava a Itatuaia; e os criadores de gado também abandonaram seus rebanhos. E os fazeres de artesanatos abandonaram suas oficinas; ferreiros, pedreiros, carpinteiros, domésticas, funcionários púbicos, Mendigos. Difícil sobreviver. Que o dissesse Johanes, agora desaparecido, embrenhando-se cada vez mais na mata à busca de lagartixas, lagartos, cobras, calangos, aves miúdas e até os mais nojentos insetos como aranhas, carrapatos...

Os outros reclamavam a falta de capim, há tempo não chovia. Falta de governo. Foram chegando os de fora e invadindo as casas por si abandonadas há tanto tempo, porque seus moradores tinha ido embora – diziam uns que para o céu, outros que para o inferno – e agora eram pasto de aranhas, formigas, besouros e todos os tipos de insetos que se pudesse imaginar, inclusive o mosquito transmissor da dengue. Itatuaia estava um horror. Johanes, que sabia de tudo, não foi consultado. Irritou-se com a situação. Falar não falava. Para lamentar de um tempo bom que passou? Refugiara-se na gruta que não tinha nome, lá não ia turista, nem alma nem lobisomem. Era a única que não fora demolida e carregada pelas empresas estrangeiras para fazer ferro e outros metais.

A cidade crescera, crescera de gente esquálida, de favelas, sem água nem esgoto, sem luz nem cemitério, sem igreja nem cartório. Mas crescera. Talvez por isto. Todos agora eram pedintes, um horror. Passaram a escavar onde outrora os habitantes de Itatuaia jogavam o lixo e depois o enterravam. Havia muitas brigas por ninharia de lixo podre molambos de roupa, bichos já petrificados, tudo. Havia quem já experimentasse comer chinelos, copos, pratos de plástico, papéis, carros (eles também já haviam entrado na era do plástico).

– Queremos a socialização da riqueza!

Engraçado. Socialização de quê?

Fizeram greves.

Johanes, nos raros momentos que botava a cabeça fora de sua gruta para caçar uma lagartixa ou outro bicho menor para o almoço – era contra e soltava seu grito, que eles escutavam mas não sabiam de onde. Não deu em nada. Nem a greve nem os avisos de Johanes “que fossem trabalhar, vagabundos!” senão quem os iria alimentar, tão logo a natureza falhasse? Cada vez mais fome, mais necessidade. Muitos já tinham morrido, o cemitério crescera. Era um verdadeiro Campo Santo. Johanes já cutucava a cabeça: “Mas santo, por quê?”

Sofreram tanto que foram obrigados a acordar todos impotentemente ou dormir o sono eterno e a cidade passaria a existir como fantasma e dar o que falar aos turistas tão deslumbrados outrora com a riqueza antropológica de suas serras, montes, grutas, riachos e rios.

Um dos ex-ricos teve um sonho. Johanes havia traído a todos e começara a trabalhar, saindo todas as noites, às escondidas, para buscar comida nos lugares mais difíceis, caçar bichos do mato. Caçar não era trabalhar? Era. Porém um ranzinza de marca maior, nunca levara ninguém aonde estava, exceto sua namorada, noiva e depois mulher. O negócio era matá-lo e não levá-lo para o cemitério como bem merecia. Iam comê-lo morto ou vivo. E alguns se salvariam da fome, salvando a cidade fantasma. O ato foi consumado e pegou. Logo mais a morte era lei. Quem tivesse fome, comia o vizinho. Era só ser mais forte (quem era forte, então) ou mais desumano. Como ali não havia gente para tanta fome, uns e outros se foram espalhando pelo mundo, até que Deus criador de tudo disse: “Raça de víboras! Estão todos condenados ao cemitério”.

Eles pensaram, pensaram e alguns se salvaram, arrependendo-se do mal. E mandaram destruir o cemitério, que estava servido apenas para enterrar ossos. No lugar, com dificuldade, com muito tempo, devagar como a barca de Noé, foi erguida uma grande fábrica de Pás, outra de Amor, e mais uma de Fraternidade. A liberdade ficaria por ai mesmo. Todos trabalhavam satisfeitos, sem ter que assinar ponto nem prestar contas a ninguém a não ser a si próprio e ao outro. Uma nova cidade, um novo mundo, a redenção. Mas não foram os pioneiros que alcançaram a graça dos benefícios do bem e da alegria, da harmonia e da felicidade, mas os filhos de seus filhos, os netos – que viveram para a eternidade, graças ao sopro daquela visão e daquele sonho do Johanes, que, saindo de sua toca, enfrentou, certo dia, a multidão faminta e despejou sobre eles suas palavras:

– Para que servem nossas mãos e nossos pés, nossos olhos e nossa cabeça!
E todos caminharam para o céu, voando, sem saudades da cidade fantasma. Levando a lembrança dos antepassados, que encontraram no plano a que estavam subindo.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor, e-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br O conto acima está no site "CONTOS BRASILEIROS" - um dos mais visitados pelos internautas viciados - criado e gerido pelo fecundo e engenhoso escritor Nilto Maciel, e-mail:niltomaciel@uol.com.br

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