segunda-feira, 5 de maio de 2008

A CASA DOS RATOS




Francisco Miguel de Moura*





Que tempos, que costumes! Como as coisas, mudam os homens e a moda. Que silêncio lá dentro! E ouvi muitas vezes a zoeira das festas. Tudo era motivo. Do Carnaval à Semana Santa, do Natal ao Dia de Reis. Eram as festas religiosas e as pagãs que memoravam seus faustos passados, celebravam os nobres da família vindos do outro lado do mar. Porém do que mais me lembro é da festa de Natal, da hora da distribuição. Morávamos na mesma rua, só que nós lá na ponta, junto com os pobres. Eu ficava rodeando, ouvindo conversas, músicas, com aquela curiosidade própria das crianças. E flagrei interessantes momentos dessas festas através de pequena fresta que se abrira no portão.

“Menino, sai de perto da casa alheia, podem se zangar”, era a voz de minha mãe me chamando às boas.

E eu teimava. E sabia quase tudo. Sabia que, de forma bem discreta, cada qual tinha ido ao shopping comprar alguma coisa para o parente eleito. Acontecia todo ano. A importância que davam ao momento das palavras que precediam a entrega do presente, por menos valioso que fosse. Dona Veroca tivera uma idéia que lhe pareceu chique e desusada. Enfeitara o jardim com vários gatos comprados em lojas de novidades, todos muito coloridos. Uns dois ou três se destacavam pelo brilho e pelos miados eletrônicos e ranhentos que soltavam de minuto a minuto. Fizera um estoque de baterias para que não faltassem mios naquela noite que iria ser especial.

“Olhem que belezura. Engraçadinhos, não acham?”

Uma mangueira escapou da derrubada de árvores que deixavam cair folhas só para dar trabalho à empregada. Era a árvore. Toda depenada pela praga de formigas recente, calhava bem. Ficou cheia de holofotes, luzes e luzinhas, a maioria em lâmpadas de papel ou plástico, os presentes ao pé, cartões de plástico também, um papelucho enorme – tudo arranjado pela diligente matrona. Chuva? Ah, não vem chuva nenhuma, estamos sendo visitados pelo “ninho”.

O filho mais velho – Juju, apelido de João – sentiria muito, capaz até de adoecer por ver seu sonho cair por terra. Desejara fazer uma festa diferente, na rua ou na calçada, mesmo que necessário pedir licença ao Diretor de Trânsito. No fim do ano o calor sufoca. Fora de portas poderia pegar-se um ventinho, nem precisava leque. Uma fogueira, talvez! Por que somente em São João? Poderia pendurar lampiões de gás na árvore da frente, outros nas paredes do muro. Também pensara em abolir o plástico, matéria que tanto o aborrecia, quer pelo cheiro, quer pela textura e cores. Era impossível. Nas lojas, abarrotadas de mercadorias com todo tipo de chamamento, música e palhaços, cartazes e camelôs, eis o que se via: made in Japan, made in China, made in USA, made in Paraguay etc. A maioria deles vendidos a R$1,99. Comemoração com um grande jantar à antiga há muito fora abolida, mas o resto da família – que família! – botou o pé na parede:

–“Tem que ter jantar à americana, quando se fala em ceia todo mundo sabe que não é ceia, é jantar. Muita comida, muita bebida, peru e champanhe, vinho e uísque rolando a noite inteira.”

Juju deixou-se cair numa cadeira (também de plástico), macambúzio porque seu sonho naufragava. Tanto que falara com a mãe! Mas ela era teimosa, renitente. Muito católico, a festa do nascimento de Jesus queria-a de acordo com a natureza do menino. Debaixo da árvore, cercada de troncos como se fossem cadeiras, ceando coalhada com rapadura, músicas religiosas antigas, a voz poderia ser a de Simone, de quem gostava muito. Tudo na maior simplicidade. E ainda lhe fizeram outra ursada. Tanto que queria convidar seus amiguinhos – sempre tivera muitos amigos, todos do sexo masculino, meninos e adolescentes. E assim se dava muito bem. Por lá, por outras casas passava praticamente todo o seu tempo. E à mansão dos pais só aparecia para dormir, e tarde, bem tarde. Gostava de arte, mas não sabia fazer nenhuma. Gostava dos artistas. Pronto. Sua vida.

O que havia para comer e beber na festa? Salgadinhos dormidos, comprados caros na padaria do centro do comércio, além do peru que tinha sido preparado pela empregada, no dia anterior. Champanhe, cerveja, uísque, vinho, conhaque, refrigerante (pouco). Lá vem ela, Dona Veroca, em seu novo vestido estampado, coberta de bijuterias, dos braços às orelhas, do pescoço ao coque do cabelo. Era o momento culminante. Garrafas secas já rolavam pelo chão, conversa alta, ninguém sabendo o que os outros diziam, quer pela voz enrolada, quer pela música que se deixara repetir, repetir mecanicamente, dezenas de vezes.

Juju finalmente tomara uma taça de champanhe.

É agora!

– “Este presente é para mamãe, a dona da casa; este é do papai, o dono da mamãe”, gritou o Juju, com sua voz esquisita, ainda assim forte, em meio ao desconsolo interior. Não era como os outros, os que tinham coragem de manifestar-se.

Estavam no auge da festa: “Este cachorrinho é do Juju (logo para ele, que não gostava de cachorro), este peixinho é da mana Mary, este gatinho é do Jonas, aquela vasilha de banheiro é de... Este pente, esta flor, este aparelho de chá, aquela coisinha... A conversa alta, a música repetindo-se, a bebida a derramar-se. E... Sem que ninguém percebesse – quem esperava aquela tragédia? – o jardim foi sendo tomado por ratos que se espalhavam entre as mesas, cadeiras, comidas e o diabo a quatro, sem dar fé dos gatos de louça (de plástico) que estavam ali de olhos brilhando. E subiam nas pernas das mulheres, entravam no bolso do paletó dos homens. Grandes, pequenos, catitas. Perfuravam os bolos, lambiam os pratos. Refestelaram-se em cima dos ossos do peru e de mais sobras de farofa, restos de bolinhos, carnes mastigadas e jogadas ao léu pelas crianças. Uma zorra. Subiam até os cabelos das mulheres, roendo os grampos, atracadores, pentes, fitas... E só uma gata velha rabugenta – e por isto ficara presa no quarto dos fundos, além da cozinha, conseguindo depois de muitas azunhadas abrir a porta – apareceu no meio deles, levantando o rabo e trazendo cheiro que para a rataria era catinga. Deu tempo ao pessoal começar de mansinho a se espalhar, fugir para a sala, os quartos e demais cômodos. Que castigo! Ou será que estavam sonhando? As crianças ficaram admirando os bichinhos até o fim. A festa dos homens já morrera com os “ahs!” e “ohs!”, justo para procurarem os banheiros e as banheiras, as piscinas e chuveiros, os lavabos mais próximos, para a urgente limpeza do corpo. Uma parte não se incomodou, ficara quieta esperando o que mais poderia acontecer. Os ratos iam entrando para os quartos junto com os meninos. Estes logo dormiram na paz de Deus, sem reclamar das cócegas que os bichinhos faziam nos pés, com a música do grunhido da ninhada, com os lambidos nas caras lambuzadas de comida da festa. E assim os invasores passaram a noite toda roendo móveis, papéis, roupas. Dos pés, mãos, narizes com tantas mordidas e arranhões, o sangue jorrava. Um pandemônio.

O pessoal da Saúde veio pela manhã e ordenou que ninguém saísse. Foram todos vacinados. Logo chegou a Polícia com seus homens, que isolaram o prédio então evacuado, após os primeiros cuidados preventivos da saúde pública.

“Ninguém mexa! É perigo!

Numa segunda etapa vieram agentes da Saúde e da Polícia montar guarda à casa. Ordens superiores. Ficarem por perto, disfarçados, vigiando.

“Ninguém mexa, é perigoso”.

O tempo vai passando.

Lembro que quando saí da Terra dos Condenados, já não era tão criança, mas ainda não perdera aquele espírito de aventura, de conhecimento. Algumas vezes tentei abrir suas janelas carcomidas, encupinzadas, cheias de teia de aranha que prendiam moscas, e de diversos insetos vivos e mortos, os quais não conseguia identificar. E muita poeira, muito lixo. Imaginava como poderia ser lá dentro.

Voltei como turista. Não obstante o governo tenha tomado a si a tarefa de higienizá-la e reformá-la sem deturpar sua história, conservando todos os seus pertences e o jardim tal como deixado naquela noite, tudo para uma espécie de “museu do rato”, empalhados todos os animais como mandava a moda do turismo – ela continua sendo uma casa mal assombrada. Para os meninos, a “Casa dos Ratos”. Mas também viera matar um pouco das saudades dos lugares onde passei os melhores dias da minha vida. Agora, os guias turísticos contam maravilhas do museu, que vale a pena visitar o local, mas o povo da cidade vizinha me conta outra história, que não é a oficial. Os visitantes que lá vão, voltam assombrados. Os ratos andam, correm e sobem no corpo dos turistas e como querem arrancar-lhes os olhos, as orelhas, entram pela boca e pelos ouvidos e acabam fazendo sangue e feridas no roer-roendo das veias e dos ossos. Depois saem e ficam brincando como se nada tivesse acontecido. A confirmação me veio de imediato. Olhando de frente o casarão de Dona Veroca, uma velhinha corcunda e manca que ia passando por ali, enxotada pelos guardas e pelos meninos-guias, joga aos meus ouvidos a linda frase que alivia os desesperados:

“Vão se f., seus filhos da p.!”

E virando-se para mim, com os olhos esbugalhados:

“Isto aqui é um inferno, seu moço! Foi castigo do orgulho da Dona.”

Não havia nenhum turista por perto nem quem me mostrasse o casarão de Dona Veroca por dentro, a “Casa dos Ratos” das crianças. Mas o Museu estava ali, na rua. Só faltava o Juju

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*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina. E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br




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