Chico Miguel: Poeta de Múltiplas Formas Criativas
Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel),
romancista, cronista, ensaísta e poeta da Geração de 1960, atual ocupante da
cadeira nº 8, da Academia Piauiense de Letras, com dezenas de livros
publicados, vem produzindo uma notável obra poética pós-moderna, sempre em
sintonia com as mais inventivas formas de expressão, sem, no entanto, abandonar
os processos criativos da tradição literária, uma característica dos grandes
poetas de sua época.
No seu livro de estreia, Areias (objeto de estudo
neste ensaio), que veio a lume em 1966, já se identificam índices de uma poesia
que o distinguem como um poeta de múltiplas formas criativas, pela capacidade
de transitar da tradição às vanguardas. Areias retorna ao leitor em primorosa
2ª edição pela Editora Life, São Paulo, 2021. O livro mantém o prefácio (Nota à
1ª edição), assinado pelo escritor Fontes Ibiapina que, à época do seu
lançamento, reconhece o poeta Chico Miguel não como estreante, mas como um
veterano na arte da poesia, ao declarar: “... estamos falando de um poeta. De
um postulante, é verdade. Mas postulante com caracteres de titular, capaz de
sentar-se a um fauteuil de cenáculo e
reger, com sua batuta de veterano na arte do verso, uma orquestra de musas” (MOURA,
2021, p. 13). Essa afirmação de Fontes Ibiapina, quanto à poesia de Chico
Miguel, deve-se tanto pela criatividade do discurso literário do poeta quanto
pela elaborada forma de expressão.
No texto de abertura, em sete estrofes livres,
com versos pentassílabos ou de redondilha menor, o eu lírico transporta-se para
o Jenipapeiro, torrão natal e cenário dos primeiros anos de vida do poeta. A
infância, tema amplamente celebrado na literatura brasileira por muitos poetas
em diferentes épocas, é também retratado em alguns poemas do livro, sempre
relacionado com as primeiras vivências e leituras de mundo do poeta:
[...]
Vinha a papa-ceia*,
Vinha a lua cheia
e o menino deitado,
deitado na areia
branca, fina, feia.
Depois, peia, peia!
[...]
Não deixes que a areia
Branca da infância
Enferruje e coma
Tua coragem
Como a aranha tece,
Tece a
tua teia.
Areias (MOURA, 2021, p.17)
Nesse poema, tem-se um eu lírico em terceira
pessoa, isto é, um narrador que converte a expressão objetiva do discurso épico
em manifestação subjetiva de uma experiência individual, por meio da
recordação, que caracteriza a essência do gênero lírico, situação em que o
poeta dá voz a um eu, e com ele se confunde.
No poema, a participação do épico, em caráter acessório, corrobora o
ponto de vista, segundo o qual nenhuma obra se classifica exclusivamente num
único gênero literário. Daí constatar-se no texto a fusão entre o lírico e o
épico. Ressalte-se o emprego do termo papa-ceia,
como incorporação da oralidade linguística no poema, em alusão ao planeta
Vênus ou Estrela da Tarde, que no firmamento surge na hora da ceia, antes do anoitecer. Numa outra
acepção, Castro Alves menciona a papa-ceia no poema Canção do Africano, com o
intuito de mostrar a solidão do africano oprimido em terra estranha: O sol faz
lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia; / Ninguém sabe como é belo / Ver
de tarde a papa-ceia!
Desde os seus primeiros versos, Chico Miguel mostra
o domínio das mais diversas formas fixas de construção poemática,
principalmente o domínio do soneto, que o compõe de todos os tipos, como o
tradicional soneto clássico italiano (ou petrarquiano), composto de dois
quartetos e dois tercetos; o soneto de formato shakespeariano,
formado por três estrofes de quatro versos e uma última de apenas dois
versos, muito usado por Mário Faustino,
e o soneto monostrófico de somente uma estrofe formada pelos quatorze versos. A
obra Sonetos da Paixão (Poema em 14
cantos), publicada por Chico Miguel em
1988, é composta em sua totalidade por sonetos monostróficos, em versos
decassílabos.
Na obra Areias, dos 42
poemas ali reunidos, 26 são sonetos. Haja vista a
preferência atual pelas formas livres, o soneto ainda se mantém como expressiva
manifestação da poesia lírica. Mesmo aqueles poetas ditos modernistas de
primeira hora são autores de consagrados sonetos, como Mário de Andrade
(Quarenta anos), Ronald de Carvalho (O filho pródigo), Manuel Bandeira (Luar de
maio) e Cassiano Ricardo (Céu e mar).
Nas gerações que se seguiram à de
1922, o soneto também se faz presente nas produções de poetas, como Mário
Quintana (Na minha rua há um menino doente), Jorge de Lima (O acendedor de
lampiões), Cecília Meireles (Soneto antigo), Vinícius de Moraes (Soneto de
fidelidade), Augusto Frederico Schimdt (Mar desconhecido), Carlos Drummond de
Andrade (Encontro) e outros.
Além do soneto, entre as diversas formas fixas de poesia trabalhadas por Chico Miguel, vale mencionar o acróstico, numa de suas raras feições, denominada teléstico, cuja particularidade consiste na construção da coluna do nome em destaque, escrito a partir da última letra de cada verso
Elisa
De tuas unhas quero o esmaltE
do vestido – o carnavaL
do riso – a boca que rI
do corpo – todas as carneS
de dentro do corpo – a almA
(MOURA, 2021, p. 68)
Na poesia de Chico Miguel, o tom memorialista (autobiográfico),
que reaviva no leitor cenas do passado e os sentimentos que este desperta, é
recorrente nos poemas Relógio, Recado a Papai Noel e Canção do Vento, como nestes versos:
Quero
ir à casa do vento,
ver
tudo quanto ele faz
Quando
sai de madrugada.
-
Ah, meu tempo de menino!
O
vento leva e não traz
[...]
Se
veste fatiota nova
no
feriado ou domingo.
Vento
das minhas ideias,
tal
como as águas dos rios,
levas
tudo para o mar:
- O mar do meu coração!
Canção do vento (MOURA, 2021, p.30)
O sentimento da terra natal, como marca da
vertente telúrica na obra poética de Chico Miguel, tem neste soneto o exemplo
mais representativo desse tema em sua obra:
Entre
dois chapadões – terra bendita,
de alma mais pura do que a branca areia,
terra que ouviu, de minha mãe contrita,
rezas a Deus logo depois da ceia.
És tão humilde e pequenina aldeia
que, pela vida, em nosso peito habita.
Qual semente daquele que semeia,
és semente do amor – terra bendita!
Teu sol é quente e é frio
o teu luar,
é gigantesca a sombra
do juazeiro,
na “carnaúba” - vento a
farfalhar
Vê-se, em roda à capela, o casario,
como a adorá-la...Ó Jenipapeiro!
De frente: o vale, o lajeado, o rio.
À minha Vila (MOURA, 2021, p. 22).
O tema da poesia é abordado com frequência pelo
autor, como neste poema em forma de epigrama, extraído da obra O Coração do Instante, composição de
origem grega, de curta extensão e de conteúdo concentrado:
Libertar um anjo
Prender os demônios
devorar os enganos...
Nenhum poema é perfeito
ou simples
pra salvar o mundo.
Novo Epigrama (MOURA, 2016, p. 365)
Esse epigrama, de caráter metalinguístico,
questiona em seus versos a própria significação do poema, pela voz do enunciador
em diálogo com o social.
Os temas filosóficos e
existenciais que falam das questões universais do homem em seu cotidiano, como
o amor, a morte, o tempo, a solidão, a saudade e a esperança também comparecem
em sua obra. São exemplos os sonetos Espera-Esfera,
Filosofia do Trivial, Perdida Esperança, Dúvida e C’est fini.
Os
poemas O operário, Caminhos, Milagre da divisão, Canto do
amor sincero e Paródia a Camões
abordam problemas sociais do Nordeste, comuns na sua região. Entre os vários motivos
tratados nessas poesias, destacamos o êxodo rural:
Não dizem donde vêm
nem pra onde vão.
Os caminhos são mudos,
não sabem se vêm ou se vão.
[...]
Levam Joões (ficam Marias),
levam nuvem, levam chuva,
levam fomes, levam vidas
montadas em “paus-de-arara”
- Tudo a caminho do sul.
Caminhos (MOURA, 2021, p.26)
A intertextualidade constitui um dos recursos
empregados com muita habilidade por Chico Miguel. Em diálogo com Da Costa e
Silva, temos um exemplo de referência explícita ao poema Saudade, neste soneto
intitulado Visão do Rio Parnaíba:
Parnaíba, te vejo
intensamente
na dor de “velho monge”
resignado,
a dar vida, prendido na
corrente,
a derramar-te longe, e
fatigado.
[...]
Nessa faina, ora calma,
ora inquieta,
humildemente,
carismaticamente,
cantas do canto que cantou o poeta.
(MOURA, 2021, p. 46)
Logo abaixo do título do soneto (Visão do Rio Parnaíba), o poeta
esclarece o leitor entre parênteses: “Com o perdão de Da Costa e Silva, o maior
dos poetas piauienses”. Essa advertência reforça a ideia de originalidade do
poeta, ao abordar um tema tão recorrente em textos de outros autores.
A paródia, outro tipo de intertextualidade, está
presente nos sonetos Paródia a Camões
e Vaidosos Mortos. O primeiro retoma
o poema camoniano Sete anos de pastor Jacob servia, para relacioná-lo “às revisões salariais
da classe trabalhadora, em 1965”:
Quantos anos de escravo “jó” servia
o patrão só por simples bagatela!
Mas servindo ao patrão, servia a
“ela”,
enquanto o preço do feijão subia.
(MOURA, 2021, p. 72)
O segundo, remissivo ao soneto de Olavo
Bilac “Virgens Mortas”, faz uma homenagem ao centenário de nascimento do
Príncipe dos Poetas Brasileiros:
Quando
um vaidoso morre e na terra se apodrece,
murcham
flores vizinhas – cardos num momento,
para
a glória da cinza – Isto é glória ou tormento?
Ao pé dele, é à pressa, atinam fazer prece.
(MOURA, 2021, p. 73)
Quanto aos poemas em
estrofes e versos livres, Chico Miguel os compõe conforme modernas e
contemporâneas formas de expressão literária, com harmonia e musicalidade, como
neste belíssimo poema lírico-amoroso, extraído do livro Poemas ou/tonais (1991), em cujos versos o eu lírico exprime os
mais íntimos sentimentos de paixão, frutos de uma experiência amorosa:
na flor de teus lábios
me vi renascido
e nos teus olhos
grandes
me fiz crescer
quebrei silêncios
gigantes
acorrentei-me
aos passos negados
à carne trêmula
às asas quebradas
com as nuvens
crianças
veio o outro
entardecer
e na escureza das
distâncias
curamos incuráveis
ânsias:
- o céu não vai
saber.
Na flor dos teus lábios (MOURA, 2016, p. 134).
No poema, a voz do enunciador na primeira
pessoa, em tom confessional, expõe o arrebatamento emocional que aflui para a concretização
de um relacionamento afetivo.
O universo poético de Chico Miguel tem suscitado da crítica inúmeros ensaios teóricos que o destacam como um dos nomes mais representativos da poesia brasileira. A exemplo de Manuel Bandeira, Chico Miguel acompanha as transformações literárias de caráter inovador, que tiveram como marco a Semana de Arte Moderna, adaptando-se ao modo de produção poética, nas formas mais inventivas da poesia, do concretismo aos dias atuais.
* Carlos Evandro Martins Eulálio, professor e crítico literário. É membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, segundo ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João Francisco Ferry.
Referências
ALVES, Castro. In Canção do Africano, extraída da obra Os Escravos, São Paulo: Martins, 1972.
MOURA, Francisco Miguel de. Areias. 2.ed. São Paulo: Life
Editora, 2021.
--------------------------------------- Poesia (IN) completa. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016, Coleção Centenário, 56.
Bibliografia consultada:
CUNHA, Helena Parente et al. Os gêneros literários. Teoria Literária 5ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do
discurso. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1984. (Bibliografia consultada)
3 comentários:
O excelente!
Muito bom!
Gostei muito. Um belo panorama de sua obra.
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