JOÃO FRANCISCO FERRY
Costuma a Academia Piauiense de Letras lembrar e registrar de forma solene o nascimento de personalidades que contribuíram para o desenvolvimento cultural, intelectual e artístico do Estado, demonstrando, desta forma, que a Academia não é câmara mortuária. É a vida e a obra que devem ser louvadas e perpetuadas, quando assim o mereçam. Ao invés, a morte não deve servir de marco para nada.
O centenário de nascimento do poeta
João Francisco Ferry não passaria despercebido. João Ferry é o patrono da
cadeira n° 38, cujo ocupante primeiro e atual é o Prof. Paulo Nunes, atual
presidente da Casa de Lucídio Freitas. Ele nasceu a 16 de abril de 1895, em
Valença do Piauí, terra que cantará num lindo soneto:
“Minha Valença é como uma rainha
Exilada no centro dos sertões...
Corre em seu seio o riacho Caatinguinha,
Que a divide em dois meigos corações.
De um lado vê-se, linda, uma capela,
Desde mil oitocentos e quarenta.
Do outro lado, a Matriz, simples e bela,
Duas torres lindíssimas ostenta.
MaIs telhados, na branca casaria,
Nos flamboyans esparsos pelas ruas,
Em tudo se denota uma alegria.
Para pintá-la ê pouco este folheto,
Descrevo-a, mas bem sei que as cores suas
Não se podem conter neste soneto. ”
Filho de José Francisco Ferreira da Silva
e Maria Constância da Silva, estudou
as primeiras letras e as primeiras contas, o equivalente ao curso primário, no
Colégio São José, em que seu
pai era diretor e professor.
Em 1907, aos 12 anos, vem para Teresina
e aqui enfrenta a luta pela vida como comerciário. E depois de aprender os segredos da profissão de guarda-livros,
nesse novo mister trabalha para diversas firmas importantes, entre as quais Ney
Ferraz & Cia., Joaquim Luz &
Cia. e Viúva Miguel de Arêa Leão, ao mesmo tempo em que presta sua colaboração
ao jornalismo, sempre colocando sua
verve cabocla, bizarra e alegre, cheia de amor pela vida.
Conta-se que, certo dia, na redação de
um jornal, enquanto lia tanta matéria policial de furtos e roubos, cujos
acusados tinham por sobrenome Ferreira, resolveu mudar o seu:
- Pronto, de hoje em diante não sou
mais Ferreira, assinarei apenas Ferry — teria dito. E foi registrá-lo no
Cartório, imediatamente.
Assim fundou a família Ferry.
Era uma personalidade versátil,
multifacetada. Além da técnica de guarda-livros, sabia inglês e francês,
praticava o jornalismo assiduamente, tanto quanto a poesia e o teatro, tendo
inclusive fundado O Lépido e Cidade de Floriano, jornais de sua juventude. Além
disto, era declamador, seresteiro e tocava flauta. Alegre e bonachão, certa
feita, já saindo do jornal para casa, foi esperar o coletivo que tanto
demorava. - Como fosse passando na ocasião uma carroça puxada a cavalos,
daquelas que ringem e rangem como carro de boi do interior, tomou-a, só pelo gosto de não chegar em casa a pés.
Ferry casou-se duas vezes, a primeira
com Adolfa da Costa
Soares Ferry e a segunda com Maria Loyola de Ferry. Do primeiro casamento, entre outros filhos,
nasceu D. Aêde Soares Ferry
de Oliveira, casada com Antônio Soares de Oliveira -de cujo casal recebi a maior parte das informações aqui
transmitidas. Creio que, nesta oportunidade, cabe também referência a Ângela
Ferry, jornalista e editora do jornal “O Dia”, filha do referido
casal e portanto neta do poeta, dramaturgo e jornalista Ferry.
Sei que uma manifestação como esta não
como esta não se circunscreve a lembrar os dados pessoais do homenageado. É muito
mais para analisar, louvar, divulgar e perpetuar sua obra. Como não a conheço
toda, cito apenas poemas tirados de Chapada
do Corisco, livro que recebeu prefácio elogioso de Fabrício de Area Leão, o
que por si só já vale uma consagração da crítica. Nas palavras de Orlando C.
Rollo, segundo prefaciador, dizendo que “Joáo Ferry é um valor sempre novo de uma geração intelectual que já não
pode ser considerada dos novos”, situa-o em
face da estética e também quanto à geração chamada dos novos, naquela época.
O compositor baiano José Carlos Capinan
declara, em um dos seus poemas, que “o
poeta não mente, apenas dificulta um pouco”..
No caso de João Ferry, a segunda parte
da afirmação de Capinan não faz sentido. Poeta popular, de acento marcadamente
romântico, cuja tradição é forte na nossa literatura, bastaria citar por
exemplo J. Coriolano e Hermínio Castelo Branco, por vezes apresenta uns laivos
de simbolista. ou trabalha formas acadêmico- parnasianas como o soneto
descritivo e a trova. Mas sempre com estilo leve, claro, objetivo, preciso e
bem humorado. Exemplifiquemos com o criativo .soneto “Marias”:
Marias, nem sei quantas, nem sei quantas,
Nem sei quantas Marias e Marias,
Nem sei quantas Marias, quantas santas%
Passaram pela ronda dos meus
dias.
As Marias do Amparo foram tantas,
Que as outras não tinham primazias,
Mas tu, Linda-MARIA, tu suplantas
Todas elas em graças e harmonias.
As do Socorro, das Mercês, das Dores,
As de Lourdes, do Carmo, do Rosário,
Também souberam conquistar amores.
Muitas outras conhecem minha história,
Mas só tu, de Jesus, és meu fadaria,
No supremo esplendor
de eterna glória. ”
Ferry é mais alegre ainda e gozado na
prosa, em suas comédias levadas à cena em quase todo o Piauí, as quais traçam
costumes e falares da gente do interior, às vezes com algum exagero. Cite-se
como exemplo a “Sétima Secção Eleitoral do Buraco Fundo”, que vem no livro Chapada do Corisco, na parte de prosa, logo
depois de um conto e uma crônica.
Sua obra, em vista das dificuldades do
meio, do tempo em que viveu e dos recursos de que dispunha, é alentada. Começou
publicando Princípios, versos em colaboração com Luiz da Paixão
Oliveira, Teresina, 1914. Em seguida, edita Os Meus Sonetos, Teresina,
1916; Em Busca de Luz, coletânea de prosa e verso, Rio, 1922; O
Cabeção, folheto em prosa e verso, Teresina, 1937; Chapada do Corisco, poesia
e prosa, Teresina, 1952; e Meu Brasil, livro publicado no ano de
sua morte, não chegando a circular por causa de erros e imprecisões. Por isto a
família pretende editá-lo agora, o que seria ato complementar importante da
comemoração de seu centenário de nascimento.
João Ferry faleceu em 23 de setembro de
1962 e está sepultado no Cemitério São José, em Teresina.
Mas, segundo Alexandre Dumas, “ os
entes queridos, que perdemos não são sepultados na terra, mas em nosso
coração. Foi Deus assim que o quis para que eles nos acompanhem para sempre. ”
Pelo depoimento do Prof. Paulo Nunes,
em seu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras, em 28 de agosto de
1967, “João Ferry foi o nosso menestrel”, portanto um ente ; também
querido do povo. E acrescenta M. Paulo Nunes, que o escolheu para patrono: “João Ferry viveu como ninguém a sua
poesia, e viver foi nele uma forma de cantar. Como os menestréis da
Idade Média, colocando o instrumento à altura do peito para melhor desferir o seu canto, Ferry
foi o mais puro cantor dos seus versos. Revejo-o declamando nas solenidades
cívicas o seu “Poço Azul ” ou o poema dedicado ao bicentenário de
sua terra natal, com aquela unção religiosa que somente possuem os
poetas e os santos. Ferry, homem do povo, era daqueles que se aproximam do povo
para cantar poemas, modulando as vozes mais afinadas de sua
sensibilidade. "
O povo ama
seus poetas e os poetas amam seu povo. Através dos representantes do povo, na
Câmara Municipal, João Ferry ganhou o nome de uma rua no Bairro Água Mineral,
Já disseram,
e não custa repetir aqui, por oportuno, que a vida de um homem não se conta
apenas pelos dias que vão entre seu nascimento e sua morte. Um verdadeiro homem
vale pelo que faz. E só se faz bem, amando. Assim, queiram ou não queiram os
santos e os filósofos, os sábios e os críticos, este é o sentido da vida: amar
e fazer: Ferry amou, fez poemas, fez o seu povo rir e sonhar. Amou sua gente e
sua terra. Foi verdadeiramente um homem.
A Academia
Piauiense de Letras sente-se bastante honrada em comemorar esta data.
° 8. Poeta, ficcionista e crítico literário.
Palestra
proferida pelo Acadêmico Francisco Miguel de Moura, em nome da Academia, na
sessão solene comemorativa do centenário de nascimento de João Ferry, no dia 17
de abril de 1995, na Casa da Cultura.
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