terça-feira, 4 de janeiro de 2022

 

JOÃO FRANCISCO FERRY

                                                           Francisco Miguel de Moura*

 

Costuma a Academia Piauiense de Letras lembrar e registrar de forma solene o nascimento de personalidades que contribuíram para o desenvolvimento cultural, intelectual e artístico do Estado, demonstrando, desta forma, que a Academia não é câmara mortuária. É a vida e a obra que devem ser louvadas e perpetuadas, quando assim o mereçam. Ao invés, a morte não deve servir de marco para nada.

O centenário de nascimento do poeta João Francisco Ferry não passaria despercebido. João Ferry é o patrono da cadeira n° 38, cujo ocupante primeiro e atual é o Prof. Paulo Nunes, atual presidente da Casa de Lucídio Freitas. Ele nasceu a 16 de abril de 1895, em Valença do Piauí, terra que cantará num lindo soneto:

 

“Minha Valença é como uma rainha

Exilada no centro dos sertões...

Corre em seu seio o riacho Caatinguinha,

Que a divide em dois meigos corações.

 

De um lado vê-se, linda, uma capela,

Desde mil oitocentos e quarenta.

Do outro lado, a Matriz, simples e bela,

Duas torres lindíssimas ostenta.

 

MaIs telhados, na branca casaria,

Nos flamboyans esparsos pelas ruas,

Em tudo se denota uma alegria.

 

Para pintá-la ê pouco este folheto,

Descrevo-a, mas bem sei que as cores suas

Não se podem conter neste soneto.

 

Filho de José Francisco Ferreira da Silva e Maria Constância da Silva, estudou as primeiras letras e as primeiras contas, o equivalente ao curso primário, no Colégio São José, em que seu pai era diretor e professor.

Em 1907, aos 12 anos, vem para Teresina e aqui enfrenta a luta pela vida como comerciário. E depois de aprender os segredos da profissão de guarda-livros, nesse novo mister trabalha para diversas firmas importantes, entre as quais Ney Ferraz & Cia., Joaquim Luz & Cia. e Viúva Miguel de Arêa Leão, ao mesmo tempo em que presta sua colaboração ao jornalismo, sempre colocando sua verve cabocla, bizarra e alegre, cheia de amor pela vida.

Conta-se que, certo dia, na redação de um jornal, enquanto lia tanta matéria policial de furtos e roubos, cujos acusados tinham por sobrenome Ferreira, resolveu mudar o seu:

- Pronto, de hoje em diante não sou mais Ferreira, assinarei apenas Ferry — teria dito. E foi registrá-lo no Cartório, imediatamente.

Assim fundou a família Ferry.

Era uma personalidade versátil, multifacetada. Além da técnica de guarda-livros, sabia inglês e francês, praticava o jornalismo assiduamente, tanto quanto a poesia e o teatro, tendo inclusive fundado O Lépido e Cidade de Floriano, jornais de sua juventude. Além disto, era declamador, seresteiro e tocava flauta. Alegre e bonachão, certa feita, já saindo do jornal para casa, foi esperar o coletivo que tanto demorava. - Como fosse passando na ocasião uma carroça puxada a cavalos, daquelas que ringem e rangem como carro de boi do interior, tomou-a, só pelo  gosto de não chegar em casa a pés.

Ferry casou-se duas vezes, a primeira com Adolfa da Costa Soares Ferry e a segunda com Maria Loyola de Ferry. Do primeiro casamento, entre outros filhos, nasceu D. Aêde Soares Ferry de Oliveira, casada com Antônio Soares de Oliveira -de cujo casal recebi a maior parte das informações aqui transmitidas. Creio que, nesta oportunidade, cabe também referência a Ângela Ferry, jornalista e editora do jornal “O Dia”, filha do referido casal e portanto neta do poeta, dramaturgo e jornalista Ferry.

Sei que uma manifestação como esta não como esta não se circunscreve a lembrar os dados pessoais do homenageado. É muito mais para analisar, louvar, divulgar e perpetuar sua obra. Como não a conheço toda, cito apenas poemas tirados de Chapada do Corisco, livro que recebeu prefácio elogioso de Fabrício de Area Leão, o que por si só já vale uma consagração da crítica. Nas palavras de Orlando C. Rollo, segundo prefaciador, dizendo que “Joáo Ferry é um valor sempre novo de uma geração intelectual que já não pode ser considerada dos novos”, situa-o em face da estética e também quanto à geração chamada dos novos, naquela época.

O compositor baiano José Carlos Capinan declara, em um dos seus poemas, que “o poeta não mente, apenas dificulta um pouco”..

No caso de João Ferry, a segunda parte da afirmação de Capinan não faz sentido. Poeta popular, de acento marcadamente romântico, cuja tradição é forte na nossa literatura, bastaria citar por exemplo J. Coriolano e Hermínio Castelo Branco, por vezes apresenta uns laivos de simbolista. ou trabalha formas acadêmico- parnasianas como o soneto descritivo e a trova. Mas sempre com estilo leve, claro, objetivo, preciso e bem humorado. Exemplifiquemos com o criativo .soneto “Marias”:

 

Marias, nem sei quantas, nem sei quantas,

Nem sei quantas Marias e Marias,

Nem sei quantas Marias, quantas santas%

Passaram pela ronda dos meus dias.

 

As Marias do Amparo foram tantas,

Que as outras não tinham primazias,

Mas tu, Linda-MARIA, tu suplantas

Todas elas em graças e harmonias.

 

As do Socorro, das Mercês, das Dores,

As de Lourdes, do Carmo, do Rosário,

Também souberam conquistar amores.

 

Muitas outras conhecem minha história,

Mas só tu, de Jesus, és meu fadaria,

No supremo esplendor de eterna glória.

Ferry é mais alegre ainda e gozado na prosa, em suas comédias levadas à cena em quase todo o Piauí, as quais traçam costumes e falares da gente do interior, às vezes com algum exagero. Cite-se como exemplo a “Sétima Secção Eleitoral do Buraco Fundo”, que vem no livro Chapada do Corisco, na parte de prosa, logo depois de um conto e uma crônica.

Sua obra, em vista das dificuldades do meio, do tempo em que viveu e dos recursos de que dispunha, é alentada. Começou publicando Princípios, versos em colaboração com Luiz da Paixão Oliveira, Teresina, 1914. Em seguida, edita Os Meus Sonetos, Teresina, 1916; Em Busca de Luz, coletânea de prosa e verso, Rio, 1922; O Cabeção, folheto em prosa e verso, Teresina, 1937; Chapada do Corisco, poesia e prosa, Teresina, 1952; e Meu Brasil, livro publicado no ano de sua morte, não chegando a circular por causa de erros e imprecisões. Por isto a família pretende editá-lo agora, o que seria ato complementar importante da comemoração de seu centenário de nascimento.

João Ferry faleceu em 23 de setembro de 1962 e está sepultado no Cemitério São José, em Teresina.

Mas, segundo Alexandre Dumas, “ os entes queridos, que perdemos não são sepultados na terra, mas em nosso coração. Foi Deus assim que o quis para que eles nos acompanhem para sempre. ”

Pelo depoimento do Prof. Paulo Nunes, em seu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras, em 28 de agosto de 1967, “João Ferry foi o nosso menestrel”, portanto um ente ; também querido do povo. E acrescenta M. Paulo Nunes, que o escolheu para patrono: João Ferry viveu como ninguém a sua poesia, e viver foi nele uma forma de cantar. Como os menestréis da Idade Média, colocando o instrumento à altura do peito para melhor  desferir o seu canto, Ferry foi o mais puro cantor dos seus versos. Revejo-o declamando nas solenidades cívicas o seu “Poço Azulou o poema dedicado ao bicentenário de sua terra natal, com aquela unção religiosa que somente possuem os poetas e os santos. Ferry, homem do povo, era daqueles que se aproximam do povo para cantar poemas, modulando as vozes mais afinadas de sua sensibilidade. "

O povo ama seus poetas e os poetas amam seu povo. Através dos representantes do povo, na Câmara Municipal, João Ferry ganhou o nome de uma rua no Bairro Água Mineral, em Teresina. Essa é uma prova oficial. Outra é a lembrança e comemoração do seu centenário de nascimento. Uma terceira será o lançamento de seu livro, que, certamente, tem todo o apoio da Academia.

Já disseram, e não custa repetir aqui, por oportuno, que a vida de um homem não se conta apenas pelos dias que vão entre seu nascimento e sua morte. Um verdadeiro homem vale pelo que faz. E só se faz bem, amando. Assim, queiram ou não queiram os santos e os filósofos, os sábios e os críticos, este é o sentido da vida: amar e fazer: Ferry amou, fez poemas, fez o seu povo rir e sonhar. Amou sua gente e sua terra. Foi verdadeiramente um homem.

A Academia Piauiense de Letras sente-se bastante honrada em comemorar esta data.

                                     --------------------------------

 (*) Ocupante da cadeira n
° 8. Poeta, ficcionista e crítico literário.

Palestra proferida pelo Acadêmico Francisco Miguel de Moura, em nome da Academia, na sessão solene comemorativa do centenário de nascimento de João Ferry, no dia 17 de abril de 1995, na Casa da Cultura.

 

 

 

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...