sábado, 19 de junho de 2021




 

                             DEVANEIO

                                                          Romanilta Rocha*

 

            ​Chico Miguel voltava ao torrão natal, a sua eterna Jenipapeiro, lugar amado e tão intimamente conhecido, pois as mais tenras memórias da sua meninice ainda teimavam em brincar sob suas retinas, mas, olhando a paisagem vazia, uma angústia o sufocava por lhe preencher a alma de tantas dúvidas: “Por     que tudo estava tão ermo?”  “Onde estavam seus confrades da ALVAR àquele momento?”

            Era 16 de junho de 2021, conforme o que propusera a sua família, não sem muita insistência, concordara em receber os amigos da ALVAR para celebrar os seus 88 anos, na “Serra dos Mouras”, um bucólico paraíso fincado nas proximidades da sede da sua  amada Francisco Santos .

            Não que lhe fosse um fardo receber tão caros amigos, entretanto o jeito retraído e de poucas conversas sempre o acompanhou. Chico Miguel tinha predileção mesmo era para “coloquiar” com as letras; seus poemas e romances ecoavam com eloquência o que por muitas vezes as palavras emudeciam. No entanto, Dona Mécia Moura, sua companheira da vida toda, tanto admoestou com firmeza e brandura seu amado, que fê-lo aceitar que completar aquela idade é uma dádiva a ser compartilhada com os que realmente lhes são caros: a família e os amigos. Desta feita, lá estava o grande escritor francisco-santense, com a ansiedade tão característica aos bons anfitriões.

            Por um lapso de tempo, Chico fitou o olhar no pequeno orvalho que ainda gotejava a folha virgem, no verdejante capim solto à brisa e nas águas apressadas do Riachão, que descia o monte, porém até onde a vista alcançava nem um resquício dos convidados e isto mais contribuía para aguçar as suas interrogações: “O que fora feito das pessoas convidadas?” “Por que nem o poeta Rogério Santos, Iara Marina, Joaquim Neto e Geovane, que praticamente moravam colados à “Serra dos Mouras”, não davam o ar da graça?

            De súbito, o poeta se detém com mais acuidade ao seu entorno e percebe pelo silêncio ensurdecedor que algo ao derredor se fazia diferente e fica a se questionar: “O que fora feito dos viventes dali?” “Por que nem um cordeiro pastava naquele imensurável campo?” “Por que nem um eco das canções juvenis ecoava junto às águas do Riachão, que agora seus olhos contemplavam?”

             A imaginação do aniversariante vagueia e rememora que já fazia um tempo incontável, quando uma seca tenebrosa, daquelas que expõem ao pânico mesmo o que está mais recôndito em nossas almas, o extraíra dali, fazendo-o ver que a terra estava árida e infecunda; o sol abrasador mais tardava a abraçar o poente... A agonia de mirrados e parcos rebanhos junto à força de uma gente bravia que teimava em manter-se de pé foram, também, imagens que se impregnaram nele.  Porém, agora, quando se parecia ter soprado o hálito da vida, o bálsamo da sobrevivência em cada recanto daquele lugar, tudo se fazia tão deserto. Ele não compreendia... Já estava quase em pane.

            Eis que o burburinho que vinha da velha e conservada casa, precisamente da ampla cozinha, onde as mulheres e os homens cuidavam dos últimos detalhes do farto almoço que seria servido, começava o alertar e, num misto de um delírio real ou, quem sabe, de uma realidade onírica, subitamente um facho de luz o desperta e confortavelmente deitado numa rede daquelas que acarinham até a alma da pessoa, ele entende que apenas sonhava. E Chico Miguel vê que ao contrário do que pregava seu devaneio não foi desta vez que a cruel estiagem, que assolou e oxalá demore vir, extinguiu os bravos seres do sertão do seu querido Piauí. Ele apenas sonhava.

            Lá fora, acabavam de chegar, de diversas localizações, os tão estimados e seletos amigos. Da aprazível SAL, Nilvon e sua linda Márcia foram os primeiros. De Teresina, Romanilta Júlia e Firmina Arrais já haviam chegado. Após, chegaram Nonato e família da Atenas Brasileira. Os Klein vindos da Terra da Garoa foram os seguintes e da Cidade Maravilhosa o grande Elves França veio exclusivamente prestigiar tão grande evento. Da capital federal vieram especialmente para a ocasião Gilson Chagas e João Erismá. Mais tarde um pouco, advindos de Alagoinhas, D. Fidélia, Eva Graça, Regivalda e o poeta Samuel; Santinha chegava de sua amada Monsenhor Hipólito; Deolinda veio lá da Lagoa Grande e Raimundinha, Rômulo Rossy, junto ao escritor Francisco de Assis, rumaram da linda São Julião e compunham a primeira leva de convidados que alegrariam a tarde. Àquela altura, acomodados sob os arejados alpendres, Geovane e o poeta Rogério já digladiavam com rimas e versos. Era a vez do poeta Rogério que extasiava a alma do aniversariante ao lançar:

 

Eu não digo por vaidade

Falsa modéstia ou coisa afim

Mas, sob este céu, não há para mim

Sinônimo de maior intelectualidade

​No verso, na prosa e na inventividade

​Que o excelso Chico Miguel de Moura

​Brilhante feito este sol que a terra doura

​Assim, é algo inexprimível

​Dizer o quanto é incrível

​E pródiga a sua literária lavoura.

 

            ​Mal o grande Chico Miguel sorvera as últimas palavras da estrofe de Rogério, eis que seu filho Fritz, em Teresina, toca-lhe suavemente o braço e diz:

              ​- Papai! Papai! Acorda! Já são 17 horas, vou levar o senhor para sua casa, pois logo mais vai começar a live do Sarau da ALVAR em homenagem à sua data natalícia.

               ​Despertando daquele devaneio tão nitidamente impregnado na sua memória recente, Chico Miguel sorrateiramente dispara:

             ​- Eu quero é chegar em casa e dormir novamente até a hora do Sarau. Quem sabe não tenha o capítulo seguinte da minha festa lá para as bandas da “Serra dos Mouras”?! - exclamou interrogando a Fritz que nada compreendeu.

                ​Enfim, o poeta estava no seu quarto. Era tardinha, antes de entrar, lá fora, de relance pôde observar os matizes de um crepúsculo que parecia a paleta de um pintor, ora melancólico com seus tons lilases, ora pleno de alegria com as cores alaranjadas a preencher cada pedacinho de céu. Mas pouco se deu conta do ocaso e resolveu cair novamente sob os domínios de Orfeu, pelo menos até a hora do sarau.

              ​E não é que o capítulo dois do seu sonho se descortinava! Agora ele tinha consciência, mesmo em estado de sono, que voltava ao sonho que tivera antes do despertar de Fritz. Senão como explicar a paisagem da conhecida “Serra dos Mouras'' que se configurava aos seus olhos, o jardim repleto de onze horas que era um dos tesouros de D. Mécia? Estava contemplativo no deleite deste jardim, quando mais uma vez, Fritz lhe chama:

              --Desperta, papai! O sarau já começou, veja que linda homenagem os caríssimos confrades alvarianos estão prestando ao senhor!

             ​Uma voz que lhe era familiar e cujas feições também já tinha visto, uma vez que tinha se deparado com aquele timbre e com aquela imagem em outras lives da ALVAR, recitava os seguintes versos do magnânimo poeta do Jenipapeiro:

 

  Quem é você?

 

  EU?

  Não me perguntem quem sou.

  Fui…  Não vou descer.

  Nem voltarei

  a um mundo que rui

  por trás de algumas fábulas,

  rainhas, princesas, santos, reis

  e paredes.

  Acreditar me dói,

  tudo está para os outros.

  Sim, os que viveram

  as mesmas ficções mortais,

  as mesmas ilusões fatais.

  Me vejo no alheio espelho,

  como se contra-face:

  O rótulo que calçam,

  a etiqueta que vestem,

  o vinho que entornam,

  a cerveja que arrotam,

  o mercado, a propaganda,

  a arte não-barroca, oca,

  os gritos da tevê

  onde ninguém me vê.

  Não! Nada sou para os sepulcros

  negros da noite.

  Só, comigo estou.

  Sou luzeiro na escuridão,

  ninguém me vê. Nem ouve.

 

     (Francisco Miguel de Moura)

                                    ------------------------

 *Era Raimunda Leonília, uma singela admiradora do nobre Chico Miguel, que comunicava aos demais colegas da Academia que estava oficialmente aberto o Sarau em homenagem ao ilustre aniversariante, o grande mestre Francisco Miguel de Moura. E foi uma linda e emocionante noite de afetos e alegrias, ainda que virtualmente.

 

Um comentário:

o mar e a brisa do prazer de aprender disse...

momento para parar e viajar na leitura.

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