domingo, 21 de dezembro de 2008

QUEM É VOCÊ, MESMO?

Novos estudos sugerem que a desordem que impede o reconhecimento dos rostos chamada de prosopagnosia, pode ser hereditária. E mais comum que se imagina.

SUZANE FRUTUOSO*


ESTRANHAMENTO O escritor Francisco de Moura diante do espelho. Ele reconhece o próprio rosto, mas não identifica pessoas conhecidas

Quando era menino, o escritor piauiense Francisco Miguel de Moura, de 73 anos, ouvia a mãe se queixar de que ela não se lembrava do rosto das pessoas. Achava estranho. Com o tempo, percebeu que tinha o mesmo problema. Diz que só reconhecia os pais e os irmãos pela voz e pelos trejeitos. Lidar com as pretendentes na juventude era um desafio. Conversava com uma moça num dia e no outro passava por ela como se não a conhecesse. No banco em que trabalhava, evitava atender clientes para não cometer indelicadezas. As dificuldades o acompanharam pela vida toda.

Até o ano passado, Francisco achava que seu problema fosse apenas uma estranha peculiaridade familiar. Mas descobriu na internet que seus sintomas coincidem com os de um raro distúrbio, a prosopagnosia. O termo vem das palavras gregas prosopon (face) e agnosia (desconhecido). A anomalia também é conhecida como cegueira para feições. Ela parece ser provocada por uma disfunção na região do cérebro responsável pela identificação das formas e das cores. Os portadores não são distraídos ou antipáticos. Eles têm um distúrbio neurológico. Até recentemente, os médicos acreditavam que a prosopagnosia acometesse apenas pacientes com algum tipo de lesão cerebral. Um derrame, por exemplo. Mas os estudos mais recentes sugerem que o problema ocorre desde o nascimento e é hereditário.

Um dos trabalhos mais relevantes sobre o assunto foi publicado em julho no American Journal of Medical Genetics. Cientistas do Instituto de Genética Humana da Universidade de Münster, na Alemanha, acompanharam 689 estudantes de ensino médio e de Medicina. O distúrbio foi diagnosticado em 17 deles. Entrevistas com a família de 14 jovens revelou que eles tinham pelo menos um parente próximo com os mesmos sintomas. Os pesquisadores acreditam que a prosopagnosia seja causada por um defeito num gene dominante. Se um dos pais é portador do gene, o filho tem 50% de chance de herdá-lo. "A descoberta é uma surpresa enorme", diz Thomas Grüter, co-autor do trabalho, ele mesmo portador de prosopagnosia. O gene que seria responsável pelo problema ainda não foi identificado.

Em geral, o portador do distúrbio enxerga fisionomias com clareza. Vê o nariz, os olhos, a boca, todo o rosto. Sabe se o interlocutor está alegre, insatisfeito, nervoso, triste. É capaz de identificar o sexo da pessoa e até discernir se ela é atraente ou não. Mas não sabe para quem está olhando. Nem se lembra da pessoa quando ela não está mais em seu campo de visão. Nos casos extremos, o sujeito não reconhece a si mesmo numa foto ou no espelho.

Quem sofre de prosopagnosia desenvolve estratégias para detectar as pessoas de seu convívio: lembra de roupas, gestos, modo de andar, estilo de cabelo ou voz. Pode levar anos até perceber que algo está errado. Muitos dos portadores do distúrbio não descobrem nunca.O problema do escritor Francisco nunca foi diagnosticado por um médico. Mas ele se identificou tanto com os sintomas descritos nos sites especializados que até colocou na internet um texto sobre suas dificuldades. Francisco encontrou uma forma de amenizar o problema. Há 47 anos, conta com o apoio da esposa, uma moça que encontrava sempre porque era amigo da família dela. Isso facilitou o relacionamento. "Ela se tornou minha secretária; me avisa quem está chegando, quem vem em casa", afirma.

Segundo Francisco, dois de seus cinco filhos dizem ter as mesmas sensações. "Vemos nitidamente olhos, boca, nariz. Mas não lembramos de ter visto aquele rosto antes", diz. Ele afirma que nunca se sentiu vítima de preconceito. Mas que sempre foi alvo de curiosidade. "O jeito é usar a simpatia e um jeito amigável para ganhar as pessoas, lembrando delas ou não", diz. Uma das queixas mais freqüentes entre os portadores de prosopagnosia é a dificuldade de acompanhar filmes e novelas. Afinal, eles não conseguem identificar os personagens. Francisco lamenta não poder ir ao cinema. "Adoro arte. Mas não consigo seguir nada porque esqueço o personagem de uma cena para a outra. Principalmente as atrizes. Elas mudam sempre o visual, nunca estão iguais", diz.

A prosopagnosia pode ser acompanhada de outras dificuldades, como encontrar o caminho para determinado lugar e conhecer carros. Francisco diz que só distingue seu automóvel pela placa ou com a ajuda do controle do alarme. "O lugar em que está, não tenho problema de lembrar. Marcas e nomes é que não sei", afirma. Há tantas dúvidas sobre esse distúrbio que a University College de Londres e a Universidade Harvard decidiram unir esforços para estudá-lo. Criaram o Centro de Pesquisas de Prosopagnosia. O instituto realizou o primeiro estudo extenso sobre o distúrbio em 2004.

Quarenta voluntários foram submetidos a uma série de testes para checar a habilidade de reconhecer - além de rostos - carros, cavalos, casas e paisagens. Muitos apresentavam uma dificuldade exclusiva com rostos humanos. "Falhar no reconhecimento de um filho, do chefe ou de pessoas que você conheceu há cinco minutos numa festa causa constrangimentos sociais. As pessoas ficam ofendidas", disse a ÉPOCA o psicólogo Bradley Duchaine, um dos criadores do projeto. Ele diz que o primeiro paciente de prosopagnosia que diagnosticou foi um adolescente, em 1998. "De lá para cá, testamos mais de 120 pessoas que apresentam essa condição. E cerca de 1.200 portadores de vários países - inclusive o Brasil - entraram em contato pelo site do centro de pesquisas", afirma.

Os pesquisadores submeteram portadores do distúrbio e voluntários sem o problema a exames de tomografia computadorizada. Identificaram respostas cerebrais anormais entre os que sofrem de prosopagnosia. "Se você mostra a uma pessoa normal dois rostos distintos enfileirados, a resposta do cérebro é diferente para cada um dos rostos. Entre os portadores de prosopagnosia, não identificamos o mesmo tipo de resposta. Parece que alguma coisa não funciona nas regiões do cérebro envolvidas com feições", afirma Duchaine.

No futuro, os cientistas deverão investir em pesquisas que confirmem o quadro de hereditariedade relacionado ao distúrbio. Essa seria uma forma de aumentar a confiabilidade dos primeiros estudos, segundo o neurologista Paulo Caramelli, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. "Os pesquisadores estão quebrando o dogma de um distúrbio raríssimo", afirma. Ele diz que, em 20 anos de profissão, viu apenas quatro casos de prosopagnosia. Mesmo assim, em pacientes com danos cerebrais. "Para o mal ser corriqueiro, os sintomas deveriam surgir com freqüência em consultório. O que não acontece."

Ainda não existe cura para a prosopagnosia. O único "tratamento" é o portador aprender a driblar suas dificuldades. E, assim, tocar a vida. Segundo o escritor Francisco, para ele é possível conviver bem com o distúrbio. Ele diz que o problema não atrapalha em nada seu trabalho com literatura. Prepara o lançamento de outro livro: Antologia - Poemas Escolhidos pelo Autor. E o que fará para cumprimentar os convidados na noite de autógrafos? "É só ser simpático com todo mundo, que ninguém fica chateado."

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*Reportagem transcrita da "Revista Época", Rio-RJ, nº 443, de 13 de novembro de 2006, assinada pela jornalista Suzane Frutuoso, residente no Rio.

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