quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Conto: DOIS MARIDOS E UM CACHORRO

Francisco Miguel de Moura*


– “Benedito, com ele não era assim!” – D. Umbelina repetia a frase de sempre. E temperava: “Ele não obedecia, mas também nunca fora de mandar”.
Tinha sido o primeiro marido, de padre e cartório. Falecera. Em seguida chegou o Florêncio, em cuja vivência cheia de altos e baixos, bastava qualquer altercação, estava o que não queria ouvir:
– “Será o Bendito?”
Não. Com aquele não fora assim: “Sou madeira de dar em doido. Só uma coisa eu quero: que minha palavra seja ouvida. É coisa sagrada, tem valor”. A própria D. Umbelina o fez saber, nos primeiros dias de ajuntamento.
Um episódio desimportante revolucionara os tempos de solteiro de Florêncio. A morte da velha Maria – lembrava a pobre mãe – que morrera de raiva, não porque fosse irada nem porque pela mordedura tenha adoecido da doença da raiva transmitida por cães. Paciência de Jô, bondade de anjo, ela foi pegada por um cachorro de estimação, de cria. A cadela paria muitos de cada vez, ele vendia para a vizinha, pagava a um moleque para levar ao mercado, mas não dava vencimento. Sobre aquele animal, Florêncio não quer nem se lembrar o nome. Tão engraçadinho, no início!
– Olhem as orelhas de abano, vejam os olhos. De que cor? Ninguém sabia ao certo dizer. Nem a raça.
Muito depois um vizinho tinha sido mordido por um cão brabo da casa do outro vizinho, o do lado de lá. Na verdade fora ele, o cão de D. Maria, que desta vez salvou-se por engano. Por isto não veio a reclamação. Ferimento leve, o homem não teve nada. Já se havia vacinado. Mas pegara uns cortes profundos no rosto e na cabeça, marcas vistas até hoje. A família, Florêncio tinha irmãos e irmãs. Apesar dos acidentes não se desfez do cachorro, que continuou mordendo o pessoal da casa e, sorrateiramente, mais alguém que tentasse entrar ou dele aproximar-se. Passou um tempão, até que Florêncio se bandeasse para a casa da viúva.
A rua da família de Florência, aliás, era de muitos cães. A televisão e os jornais mostravam histórias de crianças e mulheres atacadas, esfoladas, estragadas para o resto da vida, e até mortas por animais raivosos chamados de “pitebul”. Vacinados, não havia como pegar a doença. Mas, desde o episódio com sua mãe, Florêncio criou raiva deles, assim também as pessoas de bom senso do “pedaço”, a quem ele ia consultando e espalhando os casos que sabia.
– Morar com cachorro, nunca mais! – exclamou na casa da viúva, no primeiro dia.
Mas, D. Umbelina, claro que contra sua vontade, e sabendo disto tudo, de tradição e por boca do próprio atual marido, trouxe uma cria para dentro de casa. Florêncio disse que não era pra ficar. A pessoa que trouxe nem exigiu muito dinheiro, parece que queria se ver livre do demônio. O garoto maior de D. Umbleina estava bastante interessado. Por quê? Só queria um pretexto: deixar os livros dormindo por cima da mesa e da cama. Depois do advento do cão, sua vida era brincar, não prestava atenção aos estudos, foi reprovado. Menino é como cachorro. O cãozinho era vadio mesmo: derrubava a casa, esburacava o quintal, subia em árvore, caía, rolava no chão. As gaiolas foram destruídas, os outros bichos, infernizados. E assim foi crescendo.
– Não! Pode levar sua porcaria de volta – ainda disse.
– Não, moço, o cachorrinho vai ficar.
O enteado fez coro com a vendedora e com a mãe:
– Ah, tão bonitinho, tão espertinho! Venha cá?
– Ora, Florêncio, você não conversa comigo. Só sabe jogar dominó e dama com os colegas durante o dia e de noite sai pelos botecos para beber, caçar conversa com as mulheres... Arreda. De minha casa, eu tomo conta.
– Ou o cachorro ou eu, já disse.
A mulher empetecou:
– O cachorrinho fica, ora merda!
E tratou logo de dar-lhe um nome, nome que Florêncio nunca gravou.
– Por que não posso ter um cachorrinho para aliviar-me as tensões?
“Será que são aquelas de ordem sexual?”
Que fosse. Mas por que não uma gatinha?
Mal a vendedora o havia tirado de uma espécie de cesto, o bicho começa a latir esganiçado e a borrar a casa com suas fezes. Que nojo!
Sentiu náuseas como nunca na vida. Demorou quase nada e o cachorrinho começa a lamber-lhe os pés, puxar-lhe a bainha da calça, trepar em suas pernas para fazer pipi, irritando-o profundamente. Era todos os dias. Pior, durante as 24 horas. Angustiante. De enlouquecer. Fugiu.
Logo os visinhos sentiram falta:
– Anoiteceu e não amanheceu. Nunca mais tive notícias – respondia D. Umbelina.
Quando a angústia, a tristeza, a raiva se avolumam dentro peito forma-se como que um tumor que toma conta da alma. Foi naquele dia, Florêncio não suportou o sufoco.
Se até então tinha sido difícil, mais dura ficou sua vida. Uma espécie de torpor, a cabeça rodando, o corpo pedindo para sair por aí, andar sem rumo, andar... Sentiu-se um estranho dentro de si.
Pegou a cópia da chave que levara consigo, e quase volta um dia ao lar que abandonara. Já era o segundo; o primeiro tinha sido o da própria mãe. Pelo mesmo motivo. Sem trocar de roupas, calçado numas já bem surradas sandálias. Sem dizer para onde ia. E nunca se preocupou em dar notícia. Também ninguém o procurou. Escondeu-se nas ruas pelas noites, nos lugares mais distantes, nos bairros da periferia. Porém, sem tomar mais conhecimento de suas andanças, voltava-se no rumo da casa onde deixara a mulher, a teimosa e renitente viúva. Juntou-se com criminosos, drogados, traficantes, homossexuais, mulheres sem classificação. Os moleques da rua, sem eira nem beira, sem pai nem nome o acompanhavam.
Muitos anos depois, mais velho, alquebrado e doente, foi quando se deu por si cabeludo, barba enorme, rosto macerado, as mãos com unhas animalescas, sujas de apanhar restos de comida no lixo das casas de gente da burguesia, a quem tinha pertencido um dia – sua consciência, por um milagre não sabe de quem, voltou. Irreconhecível. Rabo entre as pernas, sem um sorriso, estava igual a uma vara de tão magro. Sem saber e sem querer, transformara-se num cão, inofensivo, mas um cão, e da companhia deles não se livrava. Alguns vira-latas o seguiam cheirando seus trapos fedorentos, disputando-lhe a posse das latas de comida podre, restos de ontem. Entretanto, lembrava de sua vida pregressa – tivera um longo sonho, não sabe se numa casa de saúde, ou porque houvera sofrido acidente – de sua última frase ao sair da casa que fora a sua casa:
- Ou ele ou eu!
E quando nada colhia dos depósitos de lixo e a barriga estava em lástima, não batia a nenhuma porta. Latia. Latia e cantava a música “Eu não sou cachorro, não”! dum cantor da sua época.
Ladina como sempre, D. Umbelina, à porta de casa, o viu passar em tais condições. A rua já era outra. Muitas casas recém construídas e outras que haviam sido levantadas, quase nenhum terreno baldio.
E então fez o sinal da cruz como para livrar-se do demônio.
– Melhor assim! – disse quando ele desapareceu na dobra da esquina distante. E acrescentou:
– “Graças a Deus, ele não me reconheceu mais nem a casa. Seria uma grande vergonha”.
E ainda foi enfática com a entidade celeste, olhando para sua fera que latia lá dentro:
– Meu anjo da guarda, salvou meu cachorrinho. Obrigado.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina, Piauí. E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br Site: franciscomigueldemoura.blogspot.com

2 comentários:

Fco. Miguel de Moura Jr. disse...

Adorei. O blog está bem feito. Conteúdo e forma se completam. Procurarei ser um leitor assíduo. Gostei tanto desse espaço democrático e sem imposto (pelo menos por enquanto) que resolvi fazer parte da família "blogueira". Fiz o meu também (http://bruzundangas-brasil.blogspot.com/). Coloquei alguns artigos (pra testar). Vamos ver no que vai dar. Parabens!

Anônimo disse...

Gostei do Blog, mais ainda do Conto "Dois Maridos e um Cachorro".
Derrubou a imagem que eu tinha de que Blog era coisa de desocupado para falar bestesteira. O seu é diferente, tem cultura, arte e coisas interessantes para ler. parabéns!

Fritz M. Morais Moura

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