A TENRA INFÂNCIA
Francisco
Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina-PI
Todos nós
somos sedentos de conhecer fatos da nossa infância, principalmente dos anos
mais tenros, quando a memória ainda não tem condições de guardá-los. O homem é
um animal histórico. Sem história, o homem não existe. E se não conseguimos
lembrar os acontecimentos e atos anteriores aos quatro anos, salvo algumas vagas
impressões visuais – aquelas que nos tenham marcado em profundidade – vemo-nos
como se tudo não passasse de pura ilusão da mente.
Acontece,
às vezes, de alguém da família contar-nos algum passado interessante. E aquilo
fica tão longe, tão longe, num cantinho da memória, que quando crescemos dá-nos
a impressão de que o vivenciamos realmente.
Quando
me olhava pensando na primeira infância sentia o gosto do vazio. Tudo o que me
falava por dentro era uma espécie de sombra do que me disseram e,
aleatoriamente, num passe de mágica, eu ia incorporando à memória recente, de
tal maneira que tudo resultasse numa pasta informe. Daí a sensação do escuro,
do limbo.
Essa
situação era de perceber fortemente até quando fui ao interior e estive na casa
de tio Toinho. Ele me contou então, passagens importantes da vida de meu pai,
Miguel Guarani, inclusive a explicação desse epíteto. Entregou-me, na ocasião,
cartas e documentos da maior valia. Eu nem suspeitava que os guardasse, por ser
ele um dos mais novos dos meus tios paternos.
Foi nessa ocasião que me contou, em tom de anedota, de brincadeira, o
que eu nem sonhara.
-
Chico – disse-me o tio Toinho – de você, ainda pequenino, eu me lembro do
seguinte: Tinha terminado a desmancha” (farinhada) na “Serra” e compadre Miguel
– os irmãos tratavam-se assim, desde que um fosse padrinho do filho do outro – pediu-me
que levasse comadre Zefa (sua mãe) e os meninos para o “Curral Novo”. A menina
menor era levada pela comadre, no colo; Teresa, a outra sua irmã, ia comigo.
Você foi colocado no meio de uma carga de jacás cheios de goma, farinha, crueira,
redes e os restantes dos apetrechos de casa. A certa altura, no meio da
estrada, uma moita que se estendia em galhos e cipós à margem, mas já cobrindo
a passagem, lhe pegou pela testa e jogou no chão.
-
E eu teria quantos anos, tio? – perguntei, atalhando-o.
-
Uns três mais ou menos.
-
E daí, que aconteceu comigo, tio Toinho? – novamente o interrompi apreensivo.
Houve
um suspense, diante de minha curiosidade. Se não me engano, na sala estavam
presentes quase todos os filhos e tia Rosa (a outra, não aquela famosa, que me
causava aborrecimentos e eu a ela), além de alguns outros primos meus.
–
Bem – meu tio rompeu seu silêncio estratégico – lembro como hoje. Você
levantou-se da queda do animal, passou a mão na cabeça, sacudiu a areia do
corpo e disse: “Arre, cão!”.
Todos
riram da maneira como o tio contou o episódio, inclusive eu.
Depois
acrescentou:
–
Menino é bicho muito resistente. Mesmo tendo o corpo frágil como tinha você,
que havia puxado a seu pai, não caindo de mau jeito, apenas reclama, levanta-se
e continua a vida como se nada tivesse acontecido. Você não sofreu nada, só a
queda. Saltei do meu animal, apanhei você do chão e coloquei novamente no meio
da carga.
Agora,
quando refaço essa viagem espiritual à minha infância, através das palavras de
meu tio Toinho e das cartas e documentos que ele me entregou – pois a história
de meu pai, naquele tempo, se confunde com a minha – sinto-me revigorado.
Porque, repito, toda riqueza do homem já está na infância, o resto é apenas
questão de desdobramento.
_______
Nota: Tio Toínho faleceu com 99 anos de idade,
ainda na fase da pandemia Convid, mas não foi por causa da gripe, acho que foi
coisa mesmo do coração.
*Francisco Miguel de Moura,
escritor brasileiro, mora em Teresina, e-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br.
3 comentários:
Ótimo texto, algumas das minhas lembranças de criança também dependeram de meus pais.
Leitura muito gostosa, vô. Também acho que a riqueza do homem está na infância, e que às vezes as soluções pra alguns problemas, e os caminhos para entendermos melhor nossas preferências estão lá. Sempre que posso pergunto aos outros, com quem convivi quando não tinha consciência formada ou memória contínua, sobre minha infância pra preencher as lacunas da anamnese -- tudo o que vivi antes dos 10 ou 11 anos é fragmentado e fantasmagórico, e mesmo os momentos marcantes são difíceis de situar no tempo. Engraçado que pra uns é mais fácil lembrar com nitidez de experiências da primeira infância. Não imagino o porquê.
Abraço!
Muito além de um simples relato familiar, a complexidade da memória, do pertencimento e da construção do "eu", através de histórias herdadas, fez-me refletir sobre a minha infância. Esta não passa de um "limbo" de lembranças vagas ou inexistentes, e as poucas que me chegam por terceiros não são do meu agrado. Feliz daquele que tem uma lembrança ou história para ser contada. Por isso, devemos valorizar as narrativas compartilhadas, pois elas preenchem lacunas da nossa existência e nos ajudam a compreender de que somos feitos e por que somos do jeito que somos. Uma crônica inspiradora para um futuro soneto. Parabéns!
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