ALGUNS SONETOS
de
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
SONETO DA PURIFICAÇÃO
Não deu aquelas coisas
imprecisas
Nem certezas felizes de
algibeira;
deu a camisa que cobria o
peito:
– Uma clara bondade sem
enganos.
Deu a palavra que abre uma
esperança,
desfaz mistérios, medos e
aflições;
e ficou triste sem saber
porque
uns são malvados, outros são
tiranos.
Deu aos bons e aos maus, a
toda hora,
sem cansar-se da luta,
desafiando
as queixas, os tropeços e
murmúrios.
Deu, por fim, o seu próprio
travesseiro,
sem esperar um gesto
agradecido...
E enfrentou a dureza do chão
puro.
SONETO DE VÉSPERA
(Para Mecinha, no seu
aniversário)
O que sentes não sei. Como
saber
o que vai n’alma de uma
criatura
ainda tão pequena, inda tão
pura,
que faz-se amar e tenta
compreender?
Sei que sinto por ti muita
ternura,
muita vontade de por ti fazer
o que possa e não possa até
morrer...
E vejo neste amor uma
loucura.
És toda a floração de uma
beleza
cheia de risos, dengos e
caprichos,
Mas também de perfume e
singeleza.
Só peço aos céus e deuses,
nos seus nichos,
transformem a alegria, hoje
tão sã,
nas tuas realizações do
amanhã.
Teresina, 13.4.2000
SONETO DO MAL-AMADO
Agora não te quero, nem me agrada
pensar que fui o louco mais feliz.
Um minuto sair eu nunca quis
de pertinho de ti, mulher malvada.
Agora não te quero mais pra nada,
nem pra riso nem choro, nem pra morte.
Minha alma fez na vida um fundo corte
que de dores ficou ultrapassada.
Agora tenho o poente e a alvorada.
E o tempo me fundiu todo o tormento
e me deu alegria redobrada.
Porque, embora sozinho, no momento
tenho força de agir com o sentimento
e abandonar-te ao léu da minha estrada.
SONETO PARA ANTÔNIO NOBRE
(No centenário do livro “Só”)
És
nobre, Antônio, qual teu triste ai
que
escreveu o teu “Só” do teu destino.
Ainda
eras tu bastante pequenino,
quando
a buscar tua mãe foi o teu pai.
Mas,
sem achá-la, volta qual menino...
Daí
teu canto enorme! E quando cai
suavemente,
do alto de um Sinai,
enche
o fundo dos olhos, toca fino.
Não,
não temas, teu livro há de dourar
por
muitos séculos mais os corações,
como
um livro de dor e de rezar.
Por
que te encantes mais nessa verdade:
-
Na triste língua portuguesa pões
o
que é mortal - por toda a eternidade.
SONETO PARA ROSÂNGELA.
É pureza no amor, a sua
incalma
e o sentir sem dizer o mais
profundo
aos amigos de agora e deste
mundo,
para não desvendar a própria
alma.
Espelhando o Piauí, Pedra do
Sal,
nos seus cabelos, nas pupilas
soltas,
ao sol de Parnaíba – ondas
revoltas...
Você tanto faz bem quanto faz
mal:
Mal, por prender suas fracas
criaturas
no seu coração tão
voluptuoso,
nas canções de Vinicius –
você pura.
Bem, quando quebra as velhas
estruturas,
no mesmo tom do mar forte e
raivoso...
Você faz desta vida uma
loucura.
DOIS SONETOS DOS SESSENTA
I. AOS
OUTROS
Quis
um soneto enorme e companheiro,
absorvendo
as noites, os dias, quais
flores
(e espinhos) pelo meu roteiro
na
guerra em que me traço: amor e paz.
Porém
me alcanço de alma para trás
e,
ao contrário de todo mensageiro:
Se
pouco eu soube, agora não sei mais
o
que antes fui, o que há de vir primeiro.
Parece
até me coloquei d'antolhos
por
que a verdade posta não me agrida
nem
me alimente a crista de refolhos.
Saiu-me
este consolo que inquieta,
todo
a sentir o despenhar da vida,
numa
história calada de poeta.
II. A MIM MESMO
Do
que por perto eu ouço, o que me afeta?
Talvez
uma maldade num pasquim
que
venha a me arredar, por incompleta,
daquilo
que tracei como meu fim.
Faço
mais lento o meu caminho. E assim
hei
de suster na dor minha caneta.
Não
me importa que digam: “Tu és ruim!
Para
que servem versos e poeta?”
Não
ouvirão de mim provocações,
basta-me
a leve aragem da bondade
sobre
a queda do fogo das paixões.
E
que eu possa sorrir-me sem vaidade
e
da lira tirar novas canções
conspiradas
no jogo desta idade.
Mais belo que o sorriso que ela solta,
qual explosão da natureza em flor,
somente o céu, abrindo-se ao amor.
Pois nada há de melhor em sua volta.
Seu prestígio do olhar consola a dor,
aplaca anseios, enriquece e adoça
a alma do viajor que acaso possa
deixar de viajar, ser seu senhor.
E quanta vez a gente desperdiça
seus passeios, perdido, sem saber
desfrutar todo o gozo que ela atiça!
Mulher, faz meu caminho mais ameno,
deixa eu sentir teu público veneno,
que eu beberei morrendo de prazer
TEMA ANTIGO I
Eu, menino, belezas e poesias
bebi na voz dos sinos de Natal,
não supunha do mundo as agonias,
tantas dores além do meu quintal.
Mamãe e papai (oh diferentes guias,
não porque pobres!) me fizeram tal
que, sem me perpetrarem heresias,
das crenças sem amor fujo, afinal.
É que a gente, crescendo, vê que tudo
não passa de ilusão, que a vida, pelas
barbas brancas do velho, é um escudo
de esconder egoísmos e mazelas.
E descobri também como o barbudo
Discriminou as casas sem janelas.
TEMA ANTIGO II
a Deus, aos santos e aos familiares,
presentes, retirando em nossas rendas
de salário – são dares e tomares.
Lojas e ruas cheias. Pelos bares,
crianças pobres gozam de outras prendas:
– O que sobrou da festa. E nos esgares,
a dor dos Zés, dos Silvas, sem merendas.
Mas no triste dos que, rezando a missa,
sob os tacões do forte e da cobiça,
esperam da justiça lerda e tarda
reparemos que ainda há esperança:
- É a bondade do povo que não cansa,
treme ou pragueja, e nunca se acovarda.
TEMA DE REVOLTA
A dor não tem
perfume nem libreto,
anda de pé
quebrado e mãos em chaga,
quer rezar e não
pode, mói-lhe a praga
do imundo pus
oculto no amuleto.
Guarda e oferece
um feio e fundo teto,
vem do escuro da
noite, o medo em baga,
antes
de ser, já morde, agride o feto.
Diante
do abismo, cresce em voz aziaga.
Dores
da falta, humilhação, rejeito,
da inveja,
desespero e do despeito,
de tudo quanto é vil que o mundo encarne.
São
feridas de fogo que nem choram,
em
palavras que as bocas estertoram
que
o pecado plantou na flor da carne.
TEMPO E HOMEM
O tempo, lindo ser – se nos abraça,
não porque quis – durar faz seu mister.
O tempo é sincronia quando enlaça
os espaços do ser e do não-ser.
É por ali que o homem perde a graça,
dessincroniza as dores e o prazer,
fuma e bebe o que resta por torcer,
contra o eterno decreto a sua raça.
De livre arbítrio em mão, segura a taça
da infidelidade ao ser que passa...
Mas o tempo se queda de impassível.
Cruel e eterno, o tempo a si se traça,
só o humano destino é que fracassa
Na construção de um ser indefinível.
TEMPO E PEDRA
No meio: solidão, silêncio e mato.
E pedras: foram gente e são granito.
O leve da manhã ao nosso olfato
cai de prece e se eleva no finito.
Livro dos índios, arco da vitória,
Gruta do Catirina, canhão, ricto,
tudo a guardar um fundo de memória
do que passou no tempo e não foi dito.
Sete Cidades numa só me fala,
quanto mais olho, mais temo, mais vejo.
E ouço essa maravilha que não cala:
A voz que gritou ai, sofreu, e amando
morreu, para viver além-desejo
e ser lá onde está, lá não estando.
TENHO MEDO...
Tenho medo de um mundo virtual,
por causa disto já perdi meu sono.
É fim-de-século, estou no abandono.
Saber? -
Ciência ou arte é tudo igual.
Medo de adormecer ao pé do trono
dum rei perdido em seu clone legal,
tão desamor, deus massa, deus sem sal,
colado em mim, da minha língua dono.
Medo que até os pontos cardeais,
de norte a sul, de leste a oeste, e mais,
percam seus distintivos e, em comum,
anunciando poder tão eloquente,
transformem o potente no impotente,
num retorno ao pastel do dia um.
TRÊS SONETOS
BARROCOS
“De
quanto amar morri...”
Ymah Thères
UM
Era triste a
caatinga ao sol de agosto,
embaixo do
imbuzeiro - e a minha infância,
a que me manda (e
só me deu desgosto),
eu sofrendo de
amor, perdido em ânsia.
Nada de nada, o mundo
era um sol-posto,
sem me encontrar,
andando na distância...
Ao que me surge -
um tronco - então me encosto.
E absorvo-me nele.
E há substância.
Fecho os olhos de
ver e mais aposto
no já
vencido, como que deposto
do altiplano onde
fui rei de lua.
E a mim me chega a
dor de mais constância,
num suspiro, num
sopro de ganância:
- O’ virgem
semideusa seminua!
DOIS
Ela fugindo... E
eu correndo empós,
no passo a passo
de um corcel alado,
galopamos nos
campos a dois - nós,
nos odores do corpo
– nada e nado.
Assim, de um mal
me sinto penetrado,
sangrando no zinir
de tantos nós,
emaranhadas mãos e
pés no emaranhado,
vou-me levando em
redes de cipós.
Qual figura de
encanto, andei parado,
pião, só que
veloz, que desgrenhado,
riso rouco de dor
barrando a voz.
Porém juntos
chegamos, lado a lado,
e caí leve, de
corpo estatelado...
Rio, fluímos para
a mesma foz.
TRÊS
Então sonhamos,
heroína e herói:
mãos unas, pés
cruzados, dente e unha,
olho, ouvido,
nariz, cabelos... Foi
nada, nem deus
sequer por testemunha.
Não nos mexemos
mais, que o tempo dói.
A vida e a morte
foram, nós ficamos.
Nada mais temo(s):
nem a dor que rói
nem tenho idéia de
onde nos deitamos.
Tempo de sol e
chuva, desprezados,
se não cantamos,
nem chorar...Coitados!
Unidos troços por
metamorfose,
falar tentamos
novamente... E nada,
línguas mordidas,
queixo com queixada,
fincamos, de pés
juntos, posse e pose.
TRISTEZA DE
ESCRITOR
Quis recolher as
emoções mais raras
de ternura, de
amor, nos livros meus.
Escrevi-as nos
dias - noites claras -
nas caladas da
vida, oh, santo Deus!
Chorei dores
daquelas sem aparas,
como sofrem, sem
culpa, tantos réus.
Vivi vidas sem
nome, de tão caras
como suster a fé
entre os incréus.
Tanto trabalho e
tanta luta em vão!
Frutos virgens
apanho em meu declive
e ofereço aos que
passam.. E nem se dão.
Por tudo, uma
palavra nunca tive,
nem de consolo nem
de compaixão.
Tristeza de
escritor só ele vive.
VISÃO DO RIO PARNAÍBA
(Com o perdão do poeta
Da Costa e Silva,
o maior poeta dos piauienses)
Parnaíba, te vejo
intensamente,
na dor de “velho monge”
resignado,
a dar vida, prendido na
corrente,
a derramar-te longe e
fatigado.
No rijo dorso levas, noite e
dia,
lendas, canoas, barcos,
pescadores.
E em cada braço, a verde
ramaria
enfeitada de rendas e de
cores.
Sem bordão, sem rosário, sem
vaidade,
desafias o sol, a areia
ardente,
abraçando cidade e mais
cidade.
Nessa faina, ora calma, ora
inquieta,
humildemente,
carismaticamente,
cantas do canto que cantou o
poeta.
Fim de ALGUNS SONETOS de
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
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