quarta-feira, 7 de setembro de 2022


 

                                                    ALGUNS SONETOS

                                                                  de 

                             FRANCISCO MIGUEL DE MOURA

 

SONETO DA PURIFICAÇÃO


Não deu aquelas coisas imprecisas

Nem certezas felizes de algibeira;

deu a camisa que cobria o peito:

– Uma clara bondade sem enganos.

 

Deu a palavra que abre uma esperança,

desfaz mistérios, medos e aflições;

e ficou triste sem saber porque

uns são malvados, outros são tiranos.

 

Deu aos bons e aos maus, a toda hora,

sem cansar-se da luta, desafiando

as queixas, os tropeços e murmúrios.

 

Deu, por fim, o seu próprio travesseiro,

sem esperar um gesto agradecido...

E enfrentou a dureza do chão puro.

 

 

SONETO DE VÉSPERA                 

(Para Mecinha, no seu aniversário)

 

O que sentes não sei. Como saber

o que vai n’alma de uma criatura

ainda tão pequena, inda tão pura,

que faz-se amar e tenta compreender?

 

Sei que sinto por ti muita ternura,

muita vontade de por ti fazer

o que possa e não possa até morrer...

E vejo neste amor uma loucura.

 

És toda a floração de uma beleza

cheia de risos, dengos e caprichos,

Mas também de perfume e singeleza.

 

Só peço aos céus e deuses, nos seus nichos,

transformem a alegria, hoje tão sã,

nas tuas realizações do amanhã.

                             

                         Teresina, 13.4.2000  

 

        SONETO DO MAL-AMADO

 

        Agora não te quero, nem me agrada

pensar que fui o louco mais feliz.

        Um minuto sair eu nunca quis

        de pertinho de ti, mulher malvada.

 

        Agora não te quero mais pra nada,

        nem pra riso nem choro, nem pra morte.

        Minha alma fez na vida um fundo corte

        que de dores ficou ultrapassada.

 

        Agora tenho o poente e a alvorada.

        E o tempo me fundiu todo o tormento

        e me deu alegria redobrada.

 

        Porque, embora sozinho, no momento

        tenho força de agir com o sentimento

        e abandonar-te ao léu da minha estrada.

 


SONETO PARA ANTÔNIO NOBRE

        (No centenário do livro “Só”)

 

 

És nobre, Antônio, qual teu triste ai

que escreveu o teu “Só” do teu destino.

Ainda eras tu bastante pequenino,

quando a buscar tua mãe foi o teu pai.

 

Mas, sem achá-la, volta qual menino...

Daí teu canto enorme! E quando cai

suavemente, do alto de um Sinai,

enche o fundo dos olhos, toca fino.

 

Não, não temas, teu livro há de dourar

por muitos séculos mais os corações,

como um livro de dor e de rezar.

 

Por que te encantes mais nessa verdade:

- Na triste língua portuguesa pões

o que é mortal - por toda a eternidade.

          


SONETO PARA ROSÂNGELA.

 

É pureza no amor, a sua incalma

e o sentir sem dizer o mais profundo

aos amigos de agora e deste mundo,

para não desvendar a própria alma.

 

Espelhando o Piauí, Pedra do Sal,

nos seus cabelos, nas pupilas soltas,

ao sol de Parnaíba – ondas revoltas...

Você tanto faz bem quanto faz mal:

 

Mal, por prender suas fracas criaturas

no seu coração tão voluptuoso,

nas canções de Vinicius – você pura.

 

Bem, quando quebra as velhas estruturas,

no mesmo tom do mar forte e raivoso...

Você faz desta vida uma loucura.

 

DOIS SONETOS DOS SESSENTA

 

 I.   AOS OUTROS

 

Quis um soneto enorme e companheiro,

absorvendo as noites, os dias, quais

flores (e espinhos) pelo meu roteiro

na guerra em que me traço: amor e paz.

 

Porém me alcanço de alma para trás

e, ao contrário de todo mensageiro:

Se pouco eu soube, agora não sei mais

o que antes fui, o que há de vir primeiro.

 

Parece até me coloquei d'antolhos

por que a verdade posta não me agrida

nem me alimente a crista de refolhos.

 

Saiu-me este consolo que inquieta,

todo a sentir o despenhar da vida,

numa história calada de poeta.

 

II.   A MIM MESMO

 

Do que por perto eu ouço, o que me afeta?

Talvez uma maldade num pasquim

que venha a me arredar, por incompleta,

daquilo que tracei como meu fim.

 

Faço mais lento o meu caminho. E assim

hei de suster na dor minha caneta.

Não me importa que digam: “Tu és ruim!

Para que servem versos e poeta?”

 

Não ouvirão de mim provocações,

basta-me a leve aragem da bondade

sobre a queda do fogo das paixões.

 

E que eu possa sorrir-me sem vaidade

e da lira tirar novas canções

conspiradas no jogo desta idade.

 

                       

SORRISO VENENO

 

Mais belo que o sorriso que ela solta,

qual explosão da natureza em flor,

somente o céu, abrindo-se ao amor.

Pois nada há de melhor em sua volta.

 

Seu prestígio do olhar consola a dor,

aplaca anseios, enriquece e adoça

a alma do viajor que acaso possa

deixar de viajar, ser seu senhor.

 

E quanta vez a gente desperdiça

seus passeios, perdido, sem saber

desfrutar todo o gozo que ela atiça!

 

Mulher, faz meu caminho mais ameno,

deixa eu sentir teu público veneno,

que eu beberei morrendo de prazer

 


TEMA ANTIGO I

 

Eu, menino, belezas e poesias

bebi na voz dos sinos de Natal,

não supunha do mundo as agonias,

tantas dores além do meu quintal.

 

Mamãe e papai (oh diferentes guias,

não porque pobres!) me fizeram tal

que, sem me perpetrarem heresias,

das crenças sem amor fujo, afinal.

 

É que a gente, crescendo, vê que tudo

não passa de ilusão, que a vida, pelas

barbas brancas do velho, é um escudo

 

de esconder egoísmos e mazelas.

E descobri também como o barbudo

Discriminou as casas sem janelas.

 

TEMA ANTIGO II

 

 Vamos levar as nossas oferendas

a Deus, aos santos e aos familiares,

presentes, retirando em nossas rendas

de salário – são dares e tomares.

 

Lojas e ruas cheias. Pelos bares,

crianças pobres gozam de outras prendas:

– O que sobrou da festa. E nos esgares,

a dor dos Zés, dos Silvas, sem merendas.

 

Mas no triste dos que, rezando a missa,

sob os tacões do forte e da cobiça,

esperam da justiça lerda e tarda

 

reparemos que ainda há esperança:

- É a bondade do povo que não cansa,

treme ou pragueja, e nunca se acovarda.

 


TEMA DE REVOLTA

 

A dor não tem perfume nem libreto,

anda de pé quebrado e mãos em chaga,

quer rezar e não pode, mói-lhe a praga

do imundo pus oculto no amuleto.

 

Guarda e oferece um feio e fundo teto,

vem do escuro da noite, o medo em baga,

      antes de ser, já morde, agride o feto.

      Diante do abismo, cresce em voz aziaga.

 

      Dores da falta, humilhação, rejeito,

      da inveja, desespero e do despeito,

      de tudo quanto é vil que o mundo encarne.

 

      São feridas de fogo que nem choram,

      em palavras que as bocas estertoram

      que o pecado plantou na flor da carne.

 

 TEMPO E HOMEM

 

O tempo, lindo ser – se nos abraça,

não porque quis – durar faz seu mister.

O tempo é sincronia quando enlaça

os espaços do ser e do não-ser.

 

É por ali que o homem perde a graça,

dessincroniza as dores e o prazer,

fuma e bebe o que resta por torcer,

contra o eterno decreto a sua raça.

 

De livre arbítrio em mão, segura a taça

da infidelidade ao ser que passa...

Mas o tempo se queda de impassível.

 

Cruel e eterno, o tempo a si se traça,

só o humano destino é que fracassa

Na construção de um ser indefinível.

 

TEMPO E PEDRA

 

No meio: solidão, silêncio e mato.

E pedras: foram gente e são granito.

O leve da manhã ao nosso olfato

cai de prece e se eleva no finito.

 

Livro dos índios, arco da vitória,

Gruta do Catirina, canhão, ricto,

tudo a guardar um fundo de memória

do que passou no tempo e não foi dito.

 

Sete Cidades numa só me fala,

quanto mais olho, mais temo, mais vejo.

E ouço essa maravilha que não cala:

 

A voz que gritou ai, sofreu, e amando

morreu, para viver além-desejo

e ser lá onde está, lá não estando.

 

TENHO MEDO...

 

Tenho medo de um mundo virtual,

por causa disto já perdi meu sono.

É fim-de-século, estou no abandono.

Saber? -  Ciência ou arte é tudo igual.

         

Medo de adormecer ao pé do trono

dum rei perdido em seu clone legal,

tão desamor, deus massa, deus sem sal,

colado em mim, da minha língua dono.

 

Medo que até os pontos cardeais,

de norte a sul, de leste a oeste, e mais,

percam seus distintivos e, em comum, 

 

anunciando poder tão eloquente,

transformem o potente no impotente,

num retorno ao pastel do dia um.

 

                   

TRÊS SONETOS BARROCOS                                   

“De quanto amar morri...”

            Ymah Thères

 

 UM

 

Era triste a caatinga ao sol de agosto,

embaixo do imbuzeiro - e a minha infância,

a que me manda (e só me deu desgosto),

eu sofrendo de amor, perdido em ânsia.

Nada de nada, o mundo era um sol-posto,

sem me encontrar, andando na distância...

Ao que me surge - um tronco - então me encosto.

E absorvo-me nele. E há  substância.

Fecho os olhos de ver e mais aposto

no já  vencido, como que deposto

do altiplano onde fui rei de lua.

E a mim me chega a dor de mais constância,

num suspiro, num sopro de ganância:

- O’ virgem semideusa seminua!

 

DOIS

 

Ela fugindo... E eu correndo empós,

no passo a passo de um corcel alado,

galopamos nos campos a dois - nós,

nos odores do corpo –  nada e nado.

Assim, de um mal me sinto penetrado,

sangrando no zinir de tantos nós,

emaranhadas mãos e pés no emaranhado,

vou-me levando em redes de cipós.

Qual figura de encanto, andei parado,

pião, só que veloz, que desgrenhado,

riso rouco de dor barrando a voz.

Porém juntos chegamos, lado a lado,

e caí leve, de corpo estatelado...

Rio, fluímos para a mesma foz.

 

TRÊS

 

Então sonhamos, heroína e herói:

mãos unas, pés cruzados, dente e unha,

olho, ouvido, nariz, cabelos... Foi

nada, nem deus sequer por testemunha.

Não nos mexemos mais, que o tempo dói.

A vida e a morte foram, nós ficamos.

Nada mais temo(s): nem a dor que rói

nem tenho idéia de onde nos deitamos.

Tempo de sol e chuva,  desprezados,

se não cantamos, nem chorar...Coitados!

Unidos troços por metamorfose,

falar tentamos novamente... E nada,

línguas mordidas, queixo com queixada,

fincamos, de pés juntos, posse e pose.

         

TRISTEZA DE ESCRITOR

 

Quis recolher as emoções mais raras

de ternura, de amor, nos livros meus.

Escrevi-as nos dias - noites claras -

nas caladas da vida, oh, santo Deus!

 

Chorei dores daquelas sem aparas,

como sofrem, sem culpa, tantos réus.

Vivi vidas sem nome, de tão caras

como suster a fé entre os incréus.

 

Tanto trabalho e tanta luta em vão!

Frutos virgens apanho em meu declive

e ofereço aos que passam.. E nem se dão.

 

Por tudo, uma palavra nunca tive,

nem de consolo nem de compaixão.

Tristeza de escritor só ele vive.

 

VISÃO DO RIO PARNAÍBA

(Com o perdão do poeta Da Costa e Silva,

 o maior poeta dos piauienses)

 

Parnaíba, te vejo intensamente,

na dor de “velho monge” resignado,

a dar vida, prendido na corrente,

a derramar-te longe e fatigado.

 

No rijo dorso levas, noite e dia,

lendas, canoas, barcos, pescadores.

E em cada braço, a verde ramaria

enfeitada de rendas e de cores.

 

Sem bordão, sem rosário, sem vaidade,

desafias o sol, a areia ardente,

abraçando cidade e mais cidade.

 

Nessa faina, ora calma, ora inquieta,

humildemente, carismaticamente,

cantas do canto que cantou o poeta.

 

           Fim de ALGUNS SONETOS de

           FRANCISCO MIGUEL DE MOURA

                    Poeta e prosador brasileiro

 

 

 


 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

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