A METÁFORA DE CADA DIA
Maria
Helena Ventura*
A poesia está na
entranha
entre prisões de
pedras
duras magras frágeis
como um veio d´água
sem margens
Francisco Miguel
Assim
começa o grande poeta piauiense Francisco Miguel de Moura a sua Antologia,
Edições Cirandinha, Piauí, 2006, setenta composições por ele escolhidas para
celebrar quarenta anos de actividade poética.
Celebração plena só com os leitores,
com quem estabeleceu uma identidade sólida dentro e fora de fronteiras. Essa
empatia resulta da qualidade da obra feita, da autenticidade que dela se
desprende e com a qual o autor pondera a razão das componentes essenciais da
sua vivência: “mordo a metáfora de cada dia”.
Tudo o que transborda do íntimo cativa
o outro, o próximo, ansioso por se irmanar na mesma “busca em palavra” (Minha
busca). Sem constrangimentos ou falsos pudores, sem comprometimento com
esquemas métricos como ele mesmo diz (Como Fazer) sem preocupações ainda
com consensos da crítica, o poeta descodifica com desembaraço uma cartografia
de sentimentos, itinerários íntimos, únicos, e ainda assim intemporais e tão
familiares a toda a gente.
Fá-lo
como se levitasse sobre as coisas, sobre os outros, alcançada uma paz dentro da
inquietação que mais não é que distanciamento calculado, sabedoria temperada
com os condimentos do percurso social e o aroma da aventura literária. O ritmo
nem sempre é o mesmo: ou verso livre, de medida curta e longa, ou soneto
finamente elaborado. Igual é a sonoridade expressiva, a riqueza lexical. É o
jogo obsessivo das palavras sob o constante bailado das ideias.
Original,
às vezes irreverente, Francisco Miguel de Moura oferece aos leitores, nesta sua
selecção de poemas, as palavras que o confortam. Não para desvendar urdiduras
ficcionais, mas para partilhar o indizível das lembranças e “deslembranças”
que permanecem. Que outra dádiva poderia ser maior do que desnudar a alma sem
artifícios, mostrando como é seguir o caminho igual a ninguém, a não ser a si
mesmo, trabalhando a palavra, o pensamento, a vida? “Trabalhei, trabalhei:/Há outra forma de amar? (A
Casa).
Francisco
Miguel de Moura revela-se um poeta extremamente moderno na alternância das
conjugações estróficas, por onde espraia uma consciência crítica de ser social
inteiramente livre (Que País é Este; Contrastes). Livre mas não
apartado. Inequívoca é a sua determinação em auscultar as contraditórias
pulsações do Tempo, uma entidade recorrente ou omnipresente no seu trabalho
poético. Porque a verdade é que há, como ele diz,
“um tempo acumulado em tempo-sim
e um tempo
esvaziado em tempo-não”
(O Tempo Existe).
E
porque o Tempo existe vestindo diferentes máscaras e esmaga a lúcida tarefa de
as enfrentar a cada passo, o poeta reconhece o dispêndio de energias para tão
efémera viagem. Daí que reitere a vontade de experimentar todas as emoções de
ser vivente,
“ganhar as estradas incultas
e abraçar novos
sentidos”
(Era o Tempo de Pintar)
com a consciência de
que “um dia a mais é sempre um dia a menos” (A Bela e a Fera).
No
entanto, para melhor aproveitar os fluidos luminosos do presente efémero, ou aumentar
a vantagem redentora do tempo-sim, Francisco Miguel de Moura expressa,
no final da Antologia, a única forma de poupar a si mesmo algumas parcelas de
sofrimento, escapando ao remoinho do tempo esvaziado:
“Quero viver do ideal concreto
quero arrancar de mim o coração
incapaz de conter todas as dores”
(Querenças)
Foi com a cúmplice emoção de quem
desfralda velas em palavras que recebi a minha quota-parte do abraço de Chico
Miguel na sua Antologia, o abraço longo e comovido de um poeta maior aos
seus fiéis leitores.
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Maria Helena Ventura,
poeta e romancista, vive no Concelho de Cascais, Portugal. É membro da
Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade de Geografia de Lisboa e da
IWA - International Writers and Artists Association (EUA)
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