sábado, 13 de julho de 2019


50 ANOS DE POESIA NO ARCO-ÍRIS DO ATLÂNTICO:
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA

Rosidelma Fraga*

                     Quero ligar esses mares:
                     Mares de todas as vidas,
                     O mar azul prometido,
                    no tempo e na correnteza.

                            (Pedra em sobressalto, 1974).


          Um prefácio interessantíssimo deve ser aquele capaz de propiciar uma relação cordial e íntima com o texto e seu leitor. Em consequência, prefaciar Poesia in Completa (1966-2016) de Francisco Miguel de Moura não seria tarefa para uma leitora que se encontra engatinhando no caminho da crítica como eu e, muito menos, se comparada à leitura perspicaz da pesquisadora reverenciada Nelly Novaes Coelho, da Universidade de São Paulo e outros escritores que se renderam à lírica do autor. No entanto, ousarei em arriscar na criação de um prefácio sobre um poeta que deveria ter entrado para a História da Literatura Brasileira e ter seu lugar merecido no panorama de pesquisas de Mestrado e Doutorado, na linha de Poéticas da modernidade e contemporaneidade. E, tal injustiça, frente à produção canônica e canonizada, será aclarada ao longo de meu discurso de recepção e, mormente, no instante da leitura da obra em seu conjunto.
          Sob esse prisma, o leitor desse prefácio compreenderá que a poesia de Moura não deixa nada a desejar perto da criação lírica de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e outros grandes e bons poetas do Brasil e além do atlântico. Caso não queira ler esse inaudível preâmbulo, o leitor ganhará tempo avançando para a leitura integral da obra. Por conseguinte, a minha argumentação será tão verdadeira quanto aceitável, no instante em que penetrar surdamente no reino de cada verso migueldemouriano. É assim que a sua poesia merece ser apreciada, sob as mil faces secretas das palavras.
          Francisco Miguel de Moura (ou Chico Miguel) é a soma elegante de poeta, cronista, romancista, crítico literário e membro da Academia Piauiense de Letras. Tem seu marco inaugural como poeta na década de 1960 quando publicou Areias (1966). É um vate de travessia secular, igualmente a Manoel de Barros, coetâneo versus contemporâneo. Não tenho conhecimento biográfico do autor e creio que sua poesia tem muito menos de autobiografia, o que difere do romance O menino quase perdido. Meu olhar será direcionado ao céu da poesia que cruza o atlântico e tomará o rumo do arco-íris do Piauí. É a poesia, em sua mais alta plenitude, que interessa ao leitor e não a vida do ser empírico. Uma de suas formas de composição é o soneto, intensamente carregado de imagens, metáforas e símbolos que também aproximam o leitor do mundo telúrico. Por excelência, um sonetista de mesma qualidade literária que Da Costa e Silva e Raimundo Correia.
          Poesia in Completa traz uma marca peculiar de um poeta que nasceu para ser eterno e vai além do moderno. A poesia não se completa no ponto final do verso. A poesia de Moura é sempre “novidade que permanece novidade”, diria Ezra Pound (1997, p. 33), porque é assim que um leitor comprometido com a linguagem e com a imagem poética se vê na primeira, segunda, terceira e infinitas leituras. Tudo se renova, inclusive, a própria metáfora que é o pão de cada dia nas mãos que lavram o verso existencial em MINHA BUSCA EM PALAVRAS, de Poemas outonais (1991): “Minha busca em palavra/lavra meu ser/- agrava minha vida em poesia/vence meu ser/ (...) /mordo a metáfora/de cada dia”.                                                        
          De 1966 a 2016 são 50 anos de poesia que não se instauram no tempo X e muito menos em um momento Y da literatura nacional. Talvez por isso, fica difícil encontrar um lugar para a poesia de Moura. O poeta é atemporal, extemporâneo, contemporâneo e muito mais. O leitor senta-se à mesa e pode estar servido de uma lírica aos moldes de Camões, ao canto dos grandes trovadores medievais, à medida de Dante, aos arquétipos concretistas, ao jogo dos simbolistas franceses, entre outras características. Todavia, eu vejo que, dentro dessa linha multifacetada, a poesia de Moura é sui generis. Trata-se de um romantismo em plena modernidade (ou pós-modernidade?). Moura é um poeta romântico sem ser exacerbado e egocêntrico. Ele mesmo define seu estilo no último poema de Poesia in Completa: “sou um romântico tão desbragado/que vivo, durmo e sonho embriagado,/sem flor nem moça, sem lua ou tema”.
          Nesse sentido, há uma medida da sensibilidade na medida em que se nota um trabalho rigoroso de quem sabe versificar e de quem conhece toda a Literatura Ocidental. Sua poesia não é um derramamento lírico e sentimental ou de inspiração fácil à luz da lua, ainda mesmo em seu livro de estreia que parece muito mais uma cilada para um leitor mediano, a qual reforço com as palavras do poeta Torquato Neto: “toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim de seu início”. Tal cilada parece reinar em Areias:

Estrela não é poesia.
Lua não é mais poesia.
Romance não é poesia.
Há muitos adjetivos
sumariamente arquivados.

E onde está a poesia?

O poema ficou sem prosa.
E tem vergonha de ser
escrito em qualquer lugar.
Mas há romance no muro,
à noite, quando a mocinha
ainda beija, ainda abraça,
ainda esconde o namorado.

A percepção enamorada que se inicia Areias parece estar vestida da candura do amor às escondidas, aos protótipos românticos. Não obstante a tessitura da imagem poética, aos poucos, se desfaz, e aponta o leitor para a reflexão da poiesis que vai além da metalinguagem ou da indagação do que é poesia. E, indiscutivelmente, dialoga com o poema A procura da poesia de Drummond. E, tanto no poeta de Itabira, quanto no poeta do Piauí, há uma reflexão sobre o papel da poesia, de não ocultar e nem dissimular na face oculta das palavras, pois, todos os caminhos ou nenhum caminho levam à poesia: “Não dizem donde vêm/nem pra onde vão/Os caminhos são mudos,/Não sabem se vêm ou se vão” (MOURA, 1966, p.6). Nesses versos, além de Drummond, Moura, ainda que, quiçá inconsciente, e sem intenção intertextual, avança para o atlântico e conversa com a poesia do português José Régio: “Não sei por onde vou/Não sei para onde vou,/Sei que não vou por aí”.
          A intertextualidade com A flor e náusea drummondiana adentra no poema CONTRASTES. A imagem destoante da cor da pele vai se misturando ao tom trágico do poema. Lirismo e dramaticidade vão de mãos dadas e o poeta piauiense parece estar taciturno e cheio de esperança. Vê-se a representação afro-brasileira de um eu-lírico que se mascara na voz de um “tu” ou como faz Jorge de Lima com “Essa negra fulô” jogando com a fuga do “eu”. Segue um excerto do poema de Moura:

A menina negra
da cidade grande
foi morta por branco
na rua preta.
[...]
Uma flor morreu
porque era preta.
[...]
Preto no preto:
– flor pretinha no asfalto!
Ninguém sabe depois.

          Prosaico e lírico é o poema. A subjetividade do poeta acaricia a imagem embebida na figura do eu trajado de máscaras ficcionais. Moura sabe vestir os disfarces da poesia ao criar a persona do próprio eu-lírico, assim como explica Michael Hamburguer em “Personas múltiplas”, na obra A verdade da poesia (2007). O eu do poema pode ser visto por trás de uma câmera. É como se o poeta que há em Moura, ao sentir a dor alheia, estivesse disfarçado no verso dando voz à marginalização da negra em flor. A flor é a náusea e é a metáfora da tragédia humana. Para ler esse poema de Moura merece o registro dos ensinamentos de T.S. Eliot quanto ao diálogo de um poeta com outro poeta em seu ensaio Tradição e talento individual:

          O passado orienta o presente e o presente modifica o passado (...). As passagens individuais da obra poética podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade (...). A tradição envolve o sentido histórico que leva o homem a escrever não somente com a própria geração, mas com toda a literatura, de forma simultânea. (ELIOT, 1989, p. 38-40).

          Moura não está na geração tão distante de Drummond e Jorge de Lima, mas se nota o reconhecimento da voz dos mestres em seu aprendizado. Manoel de Barros disse-me, em entrevista particular, que “ninguém quer ser precursor de ninguém” e, em verso ímpar, grafou: “Ninguém é pai de um poema antes de morrer”. Assim como Barros, o piauiense sabe que o seu valor de poeta existe nessa relação de cordialidade discursiva com os poetas mortos. Não se pode negar o aprendizado de Moura com a tradição clássica do verso, com a tradição da poesia moderna. E é por esse poder de releitura e de recifração da imagem que a sua poesia nasceu para ser apreciada e ele merece um lugar no céu da grande poesia brasileira.
          Na veia da tradição clássica e romântica, o poeta tece a homenagem a sua Musa Mécia e é a veia lírica camoniana que transpassa em sua memória pujante de leitor:

Mudam-se tempos, vidas e pesares,
mas, como outrora, a amar continuaremos.
Amo-te mais, não queiras nem saber,
amas-me mais, agora é como sempre.

          O amor ininterrupto e sempiterno acopla-se na tônica camoniana, mas as vontades não se mudam com os tempos. O amor pela Musa inspiradora não cede lugar à efemeridade ou fugacidade da vida, pois, para o piauiense, o “agora é como sempre”. O amor encontra a sua redenção no verso e transcende na linguagem da poesia. O amor reina da obra inaugural às obras “finais” do poeta em versos que vão além da juventude e velhice: “Não me proíbam de falar de amor!/Sou velho, mas preciso do alimento”.  O amor é o alimento de Moura e de todos os poetas porque “Se a gente não der amor, ele apodrece em nós”, confirma Manoel de Barros.
          A imagem é senão “a vis combinatória do ser e do tempo da poesia”, disse Alfredo Bosi na obra O ser e o tempo da poesia (1993). Nessa veia imagística, a paisagem surge como tema recorrente em Poesia in Completa. Não se trata de uma paisagem adoecida, mas de “paisagens com figuras existenciais”. Nesse arsenal pictórico e poético, o leitor de João Cabral de Melo Neto não passaria despercebido ao encontrá-lo na pintura poética do Piauí. Pode ser que o próprio autor não assuma essa recifração da paisagem cabralina, mas é o leitor que estabelece as convergências de um texto e outro:

PAISAGEM

Abro os braços para a paisagem
descortinada  janela a fora,
aos  olhos e ao coração:
– A vida bebida devagar.

O verde enverdece o sol,
o amarelo traz fruta-esperança,
a saudade em chuva e orvalho
não cai  do tempo à criança.

          Paisagens com figuras são os traços de um pintor ou de um poeta.  As artes misturam-se e junto a elas se mesclam a paisagem natural e a paisagem humana, a recordação lírica da infância.  Enquanto nas “Duas Paisagens” de Cabral a imagem é “apreendida no ritmo feminino de colinas e montanhas que têm seios medidos”, na lírica de Moura é contemplativa no abraço nostálgico do ser pueril: “a saudade em chuva e orvalho não cai do tempo à criança”.  Ora, a paisagem figurada apareceu no soneto VISÃO DO RIO PARNAÍBA, com louvor e canto ao local, suplicando o perdão a Da Costa e Silva, outra grande voz com a qual o poeta parece dialogar. Em tom nostálgico e em homenagem a esse príncipe dos poetas do Piauí, leia-se o texto de Moura, extraído de sua primeira obra:

Parnaíba, te vejo intensamente,
na dor de “velho monge” resignado,
a dar vida, prendido na corrente,
a derramar-te  longe, e fatigado.

No rijo dorso levas, noite e dia,
lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.

Sem bordão, sem rosário, sem vaidade,
desafias o sol, a areia ardente,
abraçando cidade e mais cidade.

Nessa faina, ora calma, ora inquieta,
humildemente, carismaticamente,
cantas do canto que cantou o poeta.

          A sugestão e o encadeamento de imagens poéticas são pontos fulcrais em Miguel de Moura. Para o escritor paraibano Paulo Nunes Batista (2002), no prefácio de Sonetos escolhidos: “[...] um dos fortes da poesia de Miguel de Moura é a criação de imagens poéticas de grande sugestividade. É um descrente, como João Cabral de Melo Neto e Bernardo Élis, que de vez em quando fala em Deus”.
          Em “visão do Rio Paranaíba”, o poeta reconhece a presença precursora de seu mestre, em seu pedido de “licença poética” quase em forma de homenagem a Da Costa e Silva, sobretudo ao finalizar o soneto. Assim como no texto de Da Costa e Silva, neste de Miguel de Moura sobrepuja o efeito sugestivo-visual em que as imagens da terra, da cidade, as cores, as lendas e as histórias se fundem em real grandeza e descrição pictórica.
          Em um único verso, o eu-lírico anuncia a sua visão do rio: “Parnaíba, te vejo intensamente”. Os outros versos que seguem são encadeamentos de imagens próximas de uma tela que vai sendo, aos poucos, iluminada pelo lirismo da nostalgia fatigada do “velho monge”. Ainda que o poeta não selecione substantivos que se oponham às palavras “dor e prisão” da primeira estrofe, o leitor há de concordar que a sugestão dos signos na segunda estrofe traduz o significado da alegria e da liberdade:

No rijo dorso levas, noite e dia,
lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.

          Moura leva a poetização ao plano de um quadro artístico que muito lembra a comparação de Simónides de Céos quando apontou a pintura como uma “poesia muda e a poesia uma pintura falante” (Muta poesis, eloquens pictura). Sua poesia parece comunicar-se com a plasticidade das cores da pintura, com os bordados, nos dois últimos versos da segunda estrofe, mas ela não é uma poesia decorativa por si só, é antes de tudo expressão autêntica de uma terra amada pelo poeta.
          Acoplada a tal imagem, o leitor tem o canto das lendas, impressões culturais, cantadas e contadas pelos pescadores às margens verdes desse universo mítico que vai se metamorfoseando no Rio de todos os poetas piauienses que me faz recordar dos versos de Alberto Caeiro: “o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia [...] Porque ninguém nunca pensou no que há para além do rio de minha aldeia”.
          Para além dessa aldeia piauiense, o rio Parnaíba, sem vaidade, sugere o símbolo da seca e opostamente o transbordar e o abraço de outras águas. A imagem que permanece no soneto é a de que o Rio Parnaíba será sempre o espaço inexaurível dos poetas que se misturam ao som das águas e das palavras, nomeadamente na evocação intertextual de Da Costa e Silva, revisitado na voz lírica de Moura.
          A respeito dessa marca intertextual, mas noutra perspectiva de rememoração, cito o soneto DELÍRIO, da obra Sonetos escolhidos (2003). Nele, a figura humana instaura-se no limiar das incertezas e da descrença que se assemelha ao desejo de Criador do Verbo, todavia um criador de imagens delirantes, com recortes na tessitura poética de memórias discursivas:

Peguei da minha Bíblia Sagrada
pensando nela achar todo o Universo.
Lida e relida, não encontrei nada,
tão contrafeito, em dúvidas imerso.

Não tendo a fé no coração gravada,
a virgem fé de remover montanha,
a palavra de Deus, viva, inspirada,
trouxe-me a dor em dúvida tamanha.

Assim, crendo e descrendo, já deliro.
Assim, dias e noites se consomem,
e eu filosofo as dores que transpiro.

Se, enfim, elevo os pensamentos meus,
tenho a angústia infinita de ser homem,
tenho o imortal desejo de ser Deus.


          O soneto distingue-se pela recorrência da memória lida e o leitor é provocado em dois instantes antagônicos: o momento que se configura na imagem de um sujeito lírico ateu (descrente) e o outro momento poético de um eu confesso na infinitude do Criador Divino e das Escrituras Sagradas. Tal leitura abre-se pelo fator inerente da obra aberta (UMBERTO ECO). É a obra que me proporciona a duplicidade de sentido na exploração da literariedade. Através do soneto, enquanto obra, o poeta revela e desvela os anseios humanos por uma força mística, agnóstica, existencial e transcendental, ao mergulhar-se no desejo de compreensão do próprio universo, chegando a confundir-se nele e transversalmente pelo verbo que se faz carne-palavra. Concernente a similar interpretação, Nelly Novaes Coelho escreveu: “Francisco Miguel de Moura aponta para a contradição existente entre o mundo à sua volta, mergulhado no escuro e o súbito vislumbre da força criadora, latente em seu próprio eu”.
          O texto permite a leitura dos signos opostos por intermédio dos verbos “crer” e “descrer”, “encontrar” e “desencontrar” (no sentido de não achar). Dessa cadeia entre o significante e o significado, o leitor tem outros percursos da escritura de negação e afirmação: “não tendo a fé de remover montanhas”, “crendo e descrendo” e “sendo eu filósofo”.
          Em consequência, o ser existencial entra no conflito que move todos os seres: vida e morte, Deus e Demônio, céu e inferno. É justamente tal antagonismo que leva o eu-lírico à confissão de suas angústias humanas, revelando, por meio da imagem poética, o anseio dilacerado de converter-se na imagem de Deus como o criador do Universo, ainda que no plano enigmático e liricamente alucinado. O soneto tem um projeto de poiesis que começa e termina em si mesmo: a busca pela completude e compreensão humana frente à arrebatadora ansiedade da origem da vida. A poesia do poeta nesse e noutros sonetos se aproximam dos pressupostos básicos da imagem poética discutida por Paul Valéry (1991) quando escreveu, em Poesia e pensamento abstrato, que a poesia é uma dança cíclica que começa e fecha em si mesma.
À memória de leitor, funda-se um diálogo com dois nomes da poesia do nordeste: Da Costa e Silva e João Cabral de Melo Neto, com os quais o poeta soube “frequentar e aprender da pedra”. Tal aprendizado perpassa em 50 poemas escolhidos pelo autor, sobretudo em CONSTRUÇÃO:
                    
As mãos criam calos e os olhos, lágrimas.
O estômago, seca e come o diário feijão.
Há que espantar, com pedras, os pássaros
Que venham roubar o brilho dos botões. [...]

Não se faz um poema com dois paus
Como se arma uma armadilha vã. [...]

Um poema precisa de anos a fio,
E da ajuda de velhos poetas passados. [...]
Um poema é feito de suor, lágrimas e sangue,
E, nos anos curado...  Mais sangue que alma.

          A lição de poesia que esse poeta piauiense aprendeu veio da mesma fonte de Cabral: “aprender da pedra”, “tecer a manhã”. CONSTRUÇÃO parece conduzir o olhar do leitor para o labor artístico do verso. Não se faz poesia da noite para o dia. “Escrever é como catar feijão” para Cabral e, para Moura, o processo de criação poética não é diferente: “Um poema precisa de anos a fio,/E da ajuda de velhos poetas passados./Não se faz só com água, palavra e vontade,/É preciso ter força”. O mesmo rigor cabralino de Educação pela pedra está nessa reflexão metalinguística de Moura. E, reiterando as palavras de T.S.Eliot e a minha leitura de recepção alhures, eis que flagro a confissão do poeta: um poema precisa do impulso e diálogo com os poetas velhos. Nesse âmbito, Moura tem muito de moderno e tal como disse João Alexandre Barbosa em Ilusões da modernidade (2001, p. 29): “O poeta moderno traduz na medida em que seu texto persegue a convergência de textos possíveis. Re-novar significa, ler o novo no velho”.
          Ao disseminar o novo, Moura oferece outros subsídios de criação para reafirmar o próprio contemporâneo como se constata na crítica de Os filhos do barro (1984):

          [...] o passado é um tempo que reaparece e que nos espera no final de cada ciclo. O passado é uma idade vindoura. Dessa forma, o futuro nos oferece uma dupla imagem: é o fim dos tempos e o seu recomeço, é a degradação do passado arquétipo e é a sua ressurreição. O fim do ciclo é a restauração do passado original (PAZ, 1984, p. 28-9).

          A originalidade da poesia de Moura não pode e nem deve desconsiderar o passado porque as convergências intertextuais dos monstros sagrados da poesia estão aqui e ali no verso para denunciar que o autor é leitor arguto do que há de melhor na literatura do ocidente. Há muitos poetas que não se agradam dessa leitura que faço. E, não sinto muito em decepcioná-los, pois o poeta cria e funda validades nas verdades alheias, diria Barthes. Todo poeta deve ter a consciência de que não é soberano da linguagem. Sua criação só existe porque a disfunção da lírica que ele carrega nas marcas de nascença o segue em relação a outros poetas vivos ou mortos. Somos todos irmãos e contaminados pela chama intertextual, seja do lado de cá ou do lado de lá do Atlântico. E, dessa forma, Moura não podia ficar alheio à memória que tem dos grandes poetas ao traduzi-los: Jorge Luís Borges, Pablo Neruda, Emily Dickinson, Henry W. Longfellow, Stephen Crane, Frederico Garcia Lorca e Ezra Pound em Poemas traduzidos (1993).
Outro ponto dialógico que destaco na poética de Moura com a tradição é a figura feminina endeusada, cortejada e sublimada atravessando toda a obra do poeta piauiense. Junto aos sonetos de Areias, o leitor encontra a bela imagem de acróstico que soa como uma canção ritmada e sensual:

ELISA

de tuas unhas quero o esmaltE
do vestido    -         o carnavaL  
do riso         -     a boca que rI
do corpo   -     todas as carneS
de dentro do corpo  -   a almA

          A imagem da mulher desejada aparece nos versos de ELISA. A poesia rende-se nas fendas de amor e erotismo tal como se lê em A dupla chama: amor e erotismo, de Octavio Paz.  E é nesse sentido que enfatizei algures sobre as ciladas da criação de Moura. O corpo é a matéria do desejo nas “carnes da mulher” sensualmente com roupa de carnaval, no lugar, onde tudo é permitido. Não obstante, é a essência da alma, da sublimação da imagem feminina que brota como a busca do eu-lírico num tom erotizado e romântico de trovar. Essa leitura pode ser conferida em seu recente e inédito livro O coração do instante, nos versos do poema ENFIM:

Ouvindo os que fazem trova,
Rimando amor com amor.
A gente, enfim, se renova
Ou se faz bom trovador.

          Amor, ódio e medo justapõem-se na força da palavra que é medida no poema FORJA de Pedras em sobressalto (1974). Ao mesmo tempo em que se explora a repetição do substantivo, cria-se a metáfora. O amor é sobressalto, é inesperado, sem medida, é desordem da alma, é caos e é sedução do corpo:

A palavra macia
na forja-oficina:
Amor, ódio, amor.
O caos ordenado,
saldo e sobressalto,
no corpo se apalpa.

Não se mede o medo
                      o amar
                      o doer.
Mede-se a palavra.


         
          Em Universo das águas (1979) percebe-se a exploração sagrada dos substantivos rio, água, oceano, ilha, correntes, gotas e palavras de mesmo campo semântico. Por vezes, o universo das águas se intercala no coração do poeta como nesse poema OS INFINITOS SE CRUZAM:


eu me banhei na corrente
que vinha de mim mesmo.

e também fui profano
nas encruzilhadas do infinito:

pequeno         x        grande.

poeta, sim, mas estou suado,
perdido no pó da estrada, cansado...
e não me lava qualquer oceano...

a gota é quem me lava.

          Como no título da obra, observa-se a dualidade sugestiva do signo: céu (universo, infinito) e água se cruzam na linha do sagrado e do profano, abrindo a epifania da linguagem poética e do eu-poemático que se purifica na própria morada do ser, em sintonia bachelardiana: “eu me banhei na corrente/que vinha de mim mesmo”. Universo das águas tem muito de simbologia e carrega a semântica profunda do rio. Para isso, eu recomendo o rigoroso ensaio da pesquisadora Deolinda Maria de Sousa Marques intitulado Um rio em Chico Miguel, editado em conjunto com Antologia: poemas escolhidos pelo autor (2006).
O lirismo de Quinteto em Mi(m) (1986) e a sua criatividade da canção em tonalidade musical em MI ou na voz de MIM são atributos dignos de análise hermenêutica. Escolho alguns versos do poema CASA e deixo a pontiaguda sugestão de leitura do poema “A mulher e a casa”, de Cabral, depois de ler este de Moura:

A casa era por dentro de mim
quando o projeto se fez homem
e a luz se aproximou.

Trabalhei, trabalhei:
- Há outra forma de amar?
De fora para dentro - jardim,
de dentro para fora  - olhar.

Os ventos da noite vieram
vindo... E as pessoas bem vestidas
da cidade levaram as telhas de cor,
o vidro do espelho, as portas partidas:
- janelas do mundo em minha busca.

          A arquitetura do verso não difere do intertexto bíblico da criação do mundo. Arquitetar a poesia requer um esboço com a palavra assim como o projeto na mão do engenheiro. Criar é sentir a frieza inorgânica do verbo, onde a sensibilidade passa a ser um adereço para Cabral, ao passo que, em Moura, a tal subjetividade é associada ao racional. Não há uma linguagem essencialmente a palo seco, mas um verso livre e planejado a palo molhado de sentimentos: “trabalhei, trabalhei./ Há outra forma de amar?”.
No que se refere à obra Sonetos da paixão há um conjunto de quatorze textos em estrutura de cantos e/ ou sonetos sem título. A marca da paixão em diversas temáticas rega toda a obra. A memória da infância inocente e os banhos da adolescência desabrochando se notam nos versos: “banhávamos no açude,/nus e brincando de galinha d'água./Rosa menina nem saber sabia/da vida que transforma e traz amor”. Sonetos da paixão tem uma figura de amor, de primeiros encantos pelo corpo, pela alma e véu da inocência. Rosa (e algumas vezes Rosinha) é a figura da amada idealizada sob a veia memorialística do poeta. Ademais, confessa o sujeito lírico: “de homem logrado é a minha história. A semente perdida dos desejos/que a paixão lá esconde atrás do pano. De que vivo? De um fio de esperança/que me liga ao passado, na memória?”.
A memória tem como objetivo resgatar um passado e, na perspectiva de Paul Ricouer, em A memória, a história e o esquecimento (2007), o ato de lembrar direciona-se à forma de reconhecimento, de reter e reviver o passado, isto é, reter as coisas de si mesmo. Na poética migueldemoriana, a memória vivida descortina o retorno ao momento do prazer e do gozo da juventude. O poeta retém esse tempo por meio da eternidade do verbo. Nesse viés analítico, pode-se subsidiar a leitura da ars memoriae no processamento do signo poético que parece construído sob a égide dos recursos mnemônicos extremamente distantes do tempo presente da lírica, nos versos, a saber: “Muitos anos depois tento alcançar/o que perdi em tantas horas tardas/ e é impossível de recuperar-se”. A memória é a única via de acesso da recuperação do passado.
Sob o prisma da memória revolucionária e social se pode ler A(R) Fogo (1983-1997), cuja publicação anterior recebeu o subtítulo de Romance da revolução. De tal criação, abro o leque para dizer que além do aspecto simbólico do título e da veia de represálias de uma geração de 1964, o poema PATERNALISMO, em sua essência, derrama o lirismo trágico e faz intertextos belíssimos com a história de Cristo:


- levanta-te daí, se és filho de deus!
- filho do diabo, disse um soldado-guarda
- filho da puta, disse um outro, sem farda

espera seus irmãos, nas últimas agonias
espera a humanidade a quem amou
espera a sua tribo

chove e troveja, o mundo que desaba
o véu do templo rasgou-se         
as velhas profecias...

maria não chegou, josé não chega
o cálice derrama em sua boca:
- o mundo inteiro se turbou

«meu deus, meu deus, por que me abandonaste?»
e a seguir:
«pai, nas tuas mãos, entrego meu espírito»

            e entregou mesmo.

          A obra Poemas outonais (1991) sobressai-se pela candura de temas universais: o amor, a morte, a sedução e, novamente, a figura feminina é cantada sob a marcha da exaltação, como se houvesse a musa figura intacta e indelével. Quem leu Vinícius de Moraes e seu canto diverso às mulheres haverá de vê-lo aqui escondido nas vértebras de Moura no que tange à mulher que passa ou até mesmo a figura de Teresa de Manuel Bandeira no poema NAS OUTRAS:


nas outras eu vejo seios
espinhas, nariz e boca
busto, barrigas e arreios

em todas eu vejo calças
do lado de lá das ancas

[...]
em você eu vejo a alma:
a melodia que passa...
não sei - a mulher que dança.

          Conforme asseverado algures, nem todo poeta almeja ser lido em relação a outros poetas. Todavia, ressalvo que cada obra tem sua particularidade e se torna universal na medida em que é capaz de celebrar o mesmo tema e recifrar a esfinge como se fosse inaugural. Ler um no outro não pressupõe falta de originalidade. A mulher de Bandeira é a estrela da manhã, a mulher de Vinícius é a que passa e fica para sempre na memória do leitor. A mulher de Moura é a mulher cuja alma é o traje da essência. Para ele, a mulher é símbolo de dança, sensualidade e musicalidade. A mulher do poeta é ímpar e sem sinonímia, a qual vai muito além da materialidade do corpo.
Nos baulartes do modernismo, Oswald de Andrade proclamou: “só a antropofagia nos une”. E, na consagrada crítica de Mário de Andrade ao brasileiro preguiçoso, Moura, ao céu do Piauí, envia seu diálogo de protesto em Poemas de cirandinha (1977-1984):

MACUNAÍMA, EU?...
não estou contra a bandeira
antes pelo contraríssimo
eu sou brasileiro sim senhor
e dá-se aquele abraço
ou então um jeitinho trigueiro

          Com a irreverência e liberdade oriundas da semana de 22, o poeta prossegue com as vantagens de Macunaíma em seu BRASILEIRINHO na mesma obra: “ai! quero amar e/fazer cinema na rua/beber em qualquer esquina/chegar em casa às quatro/da madruga/dar um jeito na cara-metade/como tenho feito na repartição/onde não trabalho (psiu!)/reparto o tempo entre fazer/nada/(bater o ponto, bater papo...)/e puxar saco do patrão/SER BRASILEIRO SEM DETURPAÇÃO”.
Merece mergulhar nos belíssimos Poemas concretos (1986-1997). Quem sabe e nasceu para ser poeta, fala de qualquer tema na exploração visual-gestual-poética ou em qualquer forma poética. O tema do amor se repete em FEITICEIRO deixando a metáfora de “amar é sofrer e doer demais” na leitura sonora ou numa implícita alusão a Camões - “amor é ferida que dói e não se sente”:

amor não se cura
no meio-dia
na hora do sol-posto
rói
rói
rói
para amanhecer
espere a noite mais
                       de mais
                               ais
                                  ss..
amor é feiticeiro

          Se em PRIMEIROS CINQUENT’ANOS, da obra As cores, a cor, o poeta celebra que “Pelo amor se conquista o mundo inteiro”, antes já havia conquistado o leitor com a força da imagem e do jogo imagético e semântico de Sonetos (1997), ao criar AMAR/ANTE:

amar/ante, amar hoje, amar depois,
antiamar-te jamais  -  é amargante.
porque deus, que é amor, de amor compôs
o que foste e serás, bela amarante

a terra e os céus instigam teu amante

          Repetidas vezes o amor é tema fulcral na obra do autor. Aqui o amor é a terra amada, por ora, amante do poeta, por outrora, amada do eu-lírico. Se não bastasse a relação dual musa e amante, o poeta eterniza-as em criação divina fundindo o encontro sagrado entre “a terra e os céus” nos laços de amor intenso com Amar/ante em belíssimo jogo de repetição e música cheia de ritmo, fazendo de Amarante uma canção.
Na esteira de recriar a vida, eis que encontro em Moura a voz de Cora Coralina nestes versos de Poemas do tempo (1997): “poeta, recia/sem receio/- e recria/teu inteiro futuro/quando o hoje não for mais/essa será a glória/do teu dia”. Preocupa-se intensamente com a tematização do tempo, passado, presente, futuro e até em desconstruir o tempo em DESTEMPO ou no conjunto de quatorze poemas da obra.
Poesia in Completa (1997) adota uma multiplicidade temática. MEU CANTO, implicitamente, possui os motivos do canto da modernista Cecília Meireles. Essencialmente, o canto do poema adquire uma conotação díspare daquele canto melancólico que até o corpo e a alma entram em estado de dor. Para Moura, o canto, mesmo saindo “pelo olhar quebrado”, consegue refazer-se no universo de gozo: “meu prazer é constraste” e, por excelência, a poesia soa em “voz original”. O motivo para o canto vem da própria relação do ser e temporalidade: “canto enquanto o mundo/me colore de essências/sensuais”.
A obra Vir@gens (2001), na exploração do título, tem mais que sentido quádruplo: Vir, Viagens, Viragens, Virgens. Esse jogo metafórico é útil para entender o poema de abertura PRIMA LAVRA:

palavra é saber
liberdade, ritmo
          de sabor sofrido
          e do antegozo;
         
          a pa/lavra aflora
instintos do instante
          do espasmo/espanto
nos seus interstícios;

          [...]
tomada em viagem,
ovo ou  claro esboço,
a palavra é virgem
no poeta em osso.

          A exploração múltipla do signo poético vir@gens pode ser encontrada na relação semântica e reflexiva da “palavra” em seu fazer poético. Palavra é: “saber”, palavra é o “estado primeiro da linguagem”: “antegozo”; palavra é labor poético ou contaminação: “pa/lavra”; palavra, entre outros semas, é fecundação: “ovo” ou é a poesia em estado nascente (VALÉRY). Semioticamente, para Moura, a palavra é, antes de ser explorada: “claro esboço”, antes de ser poesia, é “virgem” e ao se tornar criação, é “viagem” para seus leitores.
A poesia de Moura nasceu para ser eterna e perdurar nas mãos de um operário em construção, diria Vinícius de Moraes. Eis que o piauiense, em Sonetos escolhidos (2003), confirma: “o operário não morre, sobrevive/à morte do seu monstro”. E, curiosamente, o poeta havia explorado a veia da construção operária do verso em POETA-OPERÁRIO na obra Poesia in Completa (1997): “sou operário do nada/trabalho com mãos invisíveis/o dia inteiro em desacordo/com os meus fusíveis”.
Adentrando Poesia in Completa: Poemas (1997) nas multifaces da palavra e subtemas, o leitor abstrai as conversas harmoniosas com a poesia de Fernando Pessoa em poemas como CONFISSÃO e A TENTAÇÃO DO SER:

CONFISSÃO
ser outro! melhor nada ser

não crer em transmigração
nem pedaços da alma
reencarnar emoções não creio
por forte que o espírito apareça
no espírito do “eu” fora de si
na carne  fraca  -  longe de si mesma
ensinei outro saber aos meninos
          enquanto menino
           no caminho de mim

          A permutação do ser em outro encarna e reencarna-se na voz do poeta. Moura herda o niilismo e a descrença de não crer em nada de Álvaro de Campos. A figura do menino encarnado na voz do outro representa o próprio desdobramento do eu: “no espírito do “eu” fora de si/longe de si mesma/ensinei outro saber aos meninos/no caminho de mim”. O fingimento denota a busca do ser e do estar no mundo, por via do sonho: “fingir para encontrar-se, voltar para rever-se/além do sonho/além de qualquer enfado: a tentação do ser”. A respeito do desdobramento de pessoas ou personas, eu considero interessantíssima a entrevista de Francisco Miguel de Moura a si mesmo, onde o autor empírico conversa com o poeta (o ser letral) e lapida a interlocução silenciosa. Depois da leitura de Poesia in Completa, recomendo que o leitor confira a entrevista no blog do escritor que recebe o seu nome, quem sabe assim esse irrelevante prefácio adquira melhor sentido.
          Registro ainda que em Poesia in Completa: Poemas (1997), os QUARENTA E UM EPIGR(AMAS?) formariam uma obra à parte, tanto pela forma quanto pelos temas. A graciosidade, o humor e a irreverência da linguagem transbordam os versos: “Se uma rosa nascer na minha cova/eu mijo nela:/- o meu amor a/prova”. Em contrapartida, em alguns poemas de A(R) Fogo, a poesia graciosa gira na contramão. Flagra-se o contato aberto com a estética do sublime e do grotesco no canto do feio oriundo de Charles Baudelaire:

comeram os ossos,
a carne, beberam os glóbulos
vermelhos e brancos,
chafurdaram nas fezes
destes homens                
[...]
cupins sublevados:
ganham das formigas, dos urubus, dos ratos,
da decomposição: - veneno, amor, ódio,
pedra, bala, bomba,
cobiça, luxúria, hipocrisia,
evasão.
tudo transformado.

          Hugo Friedrich em sua Estrutura da lírica moderna (1991) elucidou que a poesia necessita do feio para aspirar ao sublime. Nesses versos de Moura, o choque inesperado parece vangloriar do leitor no mau gosto. E o leitor não terá nenhuma surpresa ao se deparar com as mesmas imagens da Vênus rimbaudiana com uma verruga nas partes íntimas. Em Moura, essa imagem de ruptura do belo perpassa na imagem da flor, do sagrado e do profano, ao ler alguns versos de O EU, O NÃO E O NÓS da Antologia de poemas (2006), os quais tanto se comunicam com Rimbaud quanto com a “quadrilha” drummondiana:
Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma ro...
Uma rocha, é uma pedra,
uma pedra é uma
uma perda
una.
Maria e João nunca se amam nem se casam,
e,  ralando, e rolando, se amassam e  se  massam...
Enganam-se.

Mas o tato é possível por Deus,
enquanto o Demo se esfrega
enquanto os dois não coçam o olho e o ânus.

          Em poesia de crítica social e local, o poeta cria a CANTIGA PRA TERESINA, onde o jogo de linguagem, os trocadilhos, a sugestão do signo e a cadência da palavra agregam o mote poético: “Teresina/tua sina/é ter menina/tua sina/é ser menina/[...]tere sina/é ter usina//antiga/e não ter/mina:/só gente/sargento/sarjeta/que isto deter/mina/teresina/não tem mote/não tem rima”.
          No livro de poemas Itinerário de passar a tarde (inédito) o amor ressurge como sagração da vida do homem de seu tempo e de todos os tempos como se lê em MEDAMOR.  Por excelência, o amor pela terra é a marca ímpar do ser poeta, sem tempo e contratempos na confissão de POETA SÃO CHICO:

sou poeta do piauí
até não existir mais
o rio
rio
de são paulo a piauí
dos santos, todos os cantos
bahia  frança  oropa
são aqui são agora.
são Chico sou Piauí!
se ninguém me quis
ninguém me chamou
para a sua história...
[...]
eu vi todo o mundo mudo
o mundo que não me viu.
o poeta esteve e está
lá e aqui

          De seu baú inédito o poeta presenteia o leitor com os títulos: Itinerário de passar à tarde, O coração do instante, A casa e o poeta, Lindes do caminho, As cores, a cor, Testemunho (versões e traduções), À sombra do silêncio, 50 poemas escolhidos pelo autor e Novos poemas. De todos os temas e poemas, o leitor não pode passar pelas páginas sem ser tocado por LIBERTINAGEM da obra O coração do instante:


No finito, eu sou eterno,
com ternura ou paixão,
com frieza ou sem-razão.
Não tenho é espaço-tempo.
[...]
Não discuto metafísicas,
conformo-me ao real:
O que não é – não foi,
o que há de ser –  não há.

Quero um bem pequeno:
 – ir e vir ou ficar
para quando morrer,
vogar, vagar
sem norte nem sul,
libertino espiritual...
Mente não se mete
em céu, inferno,
ou no que mais haja.


          A libertinagem circula em torno do desejo de eternidade. Ser perene é o desejo de finitude do sujeito, o ser responsável pela confissão transitória da vida: “Quero vogar, vagar sem norte nem sul, libertino espiritual”. Antes de expor seu desejo de eternizar na transcendência da morte, encontra-se uma tessitura comunicativa com a vida e a obra de Bandeira, não só no título que rememora a obra do poeta modernista, mas na ideia da “vida inteira que podia ter sido e que não foi”.  Em Moura, vê-se o mesmo caminho nas palavras de conformismo, a saber: “conformo-me ao real:/O que não é – não foi”.
Confesso que até aqui, tudo o que escrevi ainda é demasiadamente pouco para traduzir a grandeza da obra de Francisco Miguel de Moura. Transgrido a licença poética e faço minhas as palavras fabulosas de R. Leontino Filho, ao saudar os 40 anos da poesia do autor:

          As muitas vertentes do poeta deságuam na transparência da vida, gerando prazeres e emoções encandescentes. A crítica, a autocrítica, o humor, a musicalidade, as referências intertextuais, a índole metalinguística, o universo com sua gama do destino, o equilíbrio das horas, a potência imaginativa, a singela grandeza de versos, a composição rigorosa (metros, ritmos, timbres, jogos de pensamento, fecundas notações vocabulares), a eroticidade, a espiritualidade, tudo isso, além de outros elementos, podem ser observados na poesia de Francisco Miguel de Moura (LEONTINO FILHO, 2006).

          Convergindo-me com a assertiva de Filho, presumo que acertei nas primeiras páginas desse prefácio, ao dizer que Francisco Miguel de Moura não tem um lugar específico na história da literatura brasileira porque a sua poesia não tem paradigmas fixos, não pode ser lida apenas como uma ou outra característica de grupo ou conjunto de poetas de uma dada geração. Moura tem o humor, a irreverência, a liberdade e a rebeldia dos mordernos, a cadência dos grandes sonetistas clássicos e o sopro dos renacentistas, a doçura dos trovadores medievais, a eroticidade de todos os bons poetas, a espiritualidade e sensibilidade dos românticos, os jogos de pensamentos e estilos dos simbolistas, o rigor da linguagem e do verso de Cabral e Cardozo, a simplicidade bucólica dos árcades, a metafísica e o existencialismo de Pessoa e Drummond, o visual-poético dos bons concretistas... E, do lado de cá, ou do lado de lá do Atlântico, o que mais a poesia de Moura tem? Responda o leitor adentrando as páginas de Poesia In Completa, porque eu pincelei apenas 10 por cento do que a poesia dele apresenta e representa no panorama da poesia brasileira.
Para ultimar minha singela recomendação de leitura de poesia, curvar-me-ei NO MEIO DO CAMINHO. Como o leitor deve ter percebido, não segui uma exposição linear das obras. Retorno a Poemas de cirandinha (1977-1984):

no meio do caminho de minha vida
não fiz aquele soneto
e hoje estou só e desvalido
inquieto e a esmo

como é que pude me esquecer
de fazer
o que os grandes poetas fizeram?

de duas, uma aconteceu:
ou não sou, não fui grande poeta
ou minha vida não vale nada mesmo

daí o esqueci/mento

uma vida escondida/pendida
para o fim:
- uns restos de esperança
nos filhos, nos livros, talvez
e a triste exploração metafísica.

          Drummondianamente, o leitor encontra a pedra certeira no meio do caminho. A pedra removida do sepulcro, a pedra de libertação. O esquecimento da crítica hegemônica não impediu que a obra poética falasse por si somente. O poeta desponta-se como desvalido e solitário quando lamenta: “Não fiz aquele soneto”. E coloca-se no limiar aquém dos cânones: “Como é que pude me esquecer de fazer o que os grandes poetas fizeram?” O sujeito lírico direciona seu leitor para as duas possibilidades de não ter escrito a obra célebre: ou o poeta não foi grande o suficiente para ser inteiro, ou sua vida não vale um poema e se resume como nada. Ora, ser grande no verso é ser inteiro. E nesse ponto, Moura faz como Ricardo Reis. Seu niilismo e descrença emergem das chamas líricas de Álvaro de Campos. O esquecimento é excessivamente a preocupação que habita no cerne de todo poeta. Em contrapartida, é na obra que a sua eternidade se funda. Ser poeta é ser eterno e a poesia parece descortinar o lugar de permanência, da transcendência do sujeito e da imortalidade na memória do público-leitor. Sendo assim, eu não teria outra forma de assegurar que nem a obra de Francisco Miguel de Moura e nem o poeta cairão no esquecimento. A sua voz toca no universo das águas do Piauí para além do arco-íris do Atlântico porque sua poesia foi banhada no “mar azul prometido” na real certeza de que: “Deus está nas águas”.
_________
*Rosidelma Fraga
(Poeta mato-grossense e Professora de Literatura)
Goiânia, agosto de 2013.

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