Aricy Curvello (1945-2018)*
Um homem vasto
Nascido
na cidade de Lugo (Galícia) em 22 de abril de 1945, Xosé Lois García
garbosamente chega à altura de seus sessenta anos em 2005.
Em
sua pessoa podemos saudar o poeta dedicado a vários gêneros literários e à
arte, o autor de peças teatrais bem como o estudioso da realidade social, o
ativista político e cidadão empenhado. A mim, sobretudo, chamam-me a atenção o
seu fervor e o seu trabalho em prol das literaturas em dois dos mais antigos
idiomas da Península Ibérica, o Galego e o Português.
Quando
menino, por certo conheceu em sua vida escolar a repressão do governo do
Generalíssimo Franco (1936-1975) aos idiomas concorrentes do Espanhol como o
Galego e o Catalão. Muito duradouras em XLG terão sido as impressões a respeito
da violência ditatorial franquista, considerando-se a riqueza literária de seu
idioma natal e a paixão que ele lhe desperta, o Galego, que do século XI ao XIV
predominou como a língua da poesia na Península, enquanto o Castelhano era
reservado para a narrativa épica e histórica.
Ainda
jovem, coincidentemente, radicou-se na Catalunha onde reside na cidade que foi
o último bastião livre da República Espanhola a cair, em 26 de janeiro de 1939
e, ali, licenciou-se em Geografia e História pela Universidade de Barcelona.
Dada a sua feição antifranquista, por certo terá preferido fixar-se na sempre
inquieta e livre Barcelona ao invés da Madri burocrática e oficialesca.
É
sintomático que tenha procurado licenciar-se justamente em Geografia e
História, as duas ciências que mais de perto são capazes de falar do passado e
do presente, bem como do ambiente e da habitação do homem. A Universidade terá ilustrado
a XLG mais intensamente a história da Galícia, de sua cultura e de seu idioma,
bem como também de sua familiagem com o Português.
Destaco,
por exemplo, a edição de XLG de "Cantares d' Amor e de Amigo" (A
Coruña: Ediciós do Castro, Série Documentos, 1990) compostos em Galego pelo
poeta barcelonês Carles Riba (1893-1959), intelectual comprometido com a
República e que teve de se exilar em 1939 na França. (Carles Riba traduziu para
o Catalão obras capitais de Sófocles, Ésquilo, Plutarco, Kavafis, Hölderlin,
Poe, Rilke e Kafka, entre outros, além de nos deixar uma extensa bibliografia
em poesia e ensaios literários.)
Também
destaco, na área de filologia, "Os Trobadores das Terras de Chantada"
(A Coruña, 2001), livro composto por vários artigos que XLG publicou em
diversos jornais e com eles pronunciou a conferência sobre o tema, no Cassino
de Chantada (Galícia), em 28 de Janeiro de 2000. O volume se abre com
"Airas Moniz de Asma, o Precursor", poeta pioneiro da Chantada, do
século XIII, que precedeu os trovadores registrados nos cancioneiros medievais,
deixando de ser Xohan de Requeixo o único deles. Sobre este último,
"Interpretacións sobre o Trobador Xohan de Requeixo" tenta levantar o
véu das incógnitas a respeito da vida e das canções deste poeta da Idade Média.
Na
brilhante introdução que abre seu ensaio "Lectura e Itinerário Posibel
pólo Terra Cha de Manuel Maria" ( Lugo: Talleres Gráficos Diputación
Provincial, 1994), em que se pergunta se a Galícia já tem o seu grande poema,
responde que: "Os poetas galegos, sobre todo os do século XX, dán
suficientes mostras de ter construido a gran Poema de Galicia. Cada um dendes o
seu meio nativo. Pensamos, ao respecto, na terra de Bergantiños cantada por
Pondal; o xa nomeado libro de Novoneyra, sobre o Caurel; de Antón Tovar, sobre
o Limia; de González Garcés sobre a mariña coruñesa; de Fiz Vergara Vilariño,
sobre as sabreiras terras do Incio; de Leiras e máis de Noriega, sobre
Mondoñedo e así podíamos citar unha longa ringleira de contribuintes a esse
gran Poema de Galicia que, gracias a eles, está feito e asentado nesa
fragmentación que marcan a esencilidad hexemónica da nosa lírica" (p. 7).
Uma
vasta obra e um vasto salto
Além
de assinar vários livros de poesia e de ensaios, XLG é articulista de crítica
literária e de arte, também tratando de temas sociais em revistas e jornais
especializados.
Autor
de várias peças de teatro, em sua bagagem há também "Xente de
Inverno" (A Coruña, 1995), livro de contos em que faz renascer a Galícia
de sua infância, a dos anos quarenta e cinquenta do século XX, em histórias do
mundo rural galego.
Como
estudioso de arte é um sério investigador da simbologia românica, sobre a qual
produziu dois livros, "Simboloxía do Românico de Amarante"(em
Portugal) e "Simboloxía do Românico de Pantón" (na Galícia).
É
deveras impressionante o trabalho desenvolvido e publicado por XLG em Galego e
em Português, seja em literatura, seja nos vários campos de seus estudos, de
forma a outra vez enlaçar Galícia e Portugal como constituindo região cultural
única embora diferenciada, mas decididamente não-castelhana.
Não
tardou muito em considerar as consequências dos empreendimentos coloniais de
Portugal que alargaram de muito o espaço do idioma português no mundo. A partir
de seu apoio à independência das antigas colônias portuguesas no continente
africano, XLG desenvolveu a consciência da necessidade de enlaçar em sua obra e
em suas atividades também os países lusófonos da África, América e Ásia.
Escreveu
prefácios para várias obras de escritores africanos lusófonos, dentre os quais
se destaca um verdadeiro ensaio curto em Português intitulado "Amílcar
Cabral: Ideologia, Nacionalismo e Cultura" que abre o livro de Cabral
"Nacionalismo e Cultura", lançado em Português pela Edicións
Laiovento (Santiago de Compostela, 1999).
XLG
tem desenvolvido também várias atividades em palestras individuais, em
Congressos e simpósios sobre a cultura e a literatura dos diversos países de
expressão lusófona, bem como nos meios de divulgação da Espanha, sobretudo na
Galícia e na Catalunha.
Vocação galaico-lusófona
Além
de vasta, a obra do mestre de potente é multifacetada. No entretanto, em todos
os gêneros há nela, sempre, pontos de contato galego com o mundo da lusofonia.
Uma vocação de enlace, esta é uma de suas características mais marcantes.
Sabemos
que até o século XI o Galego constituía um complexo linguístico com a antiga
fala portuguesa do norte do Douro, o Galaico-português ou Galego-português, o
qual historicamente originou o Português moderno. São os mesmos do Português os
traços gerais característicos do Galego, ambos se diferenciando de modo geral
na ortografia e na pronúncia. Uma das mais expressivas diferenças é a
substituição da fricativa sonora j pela fricativa surda x, donde o lusitano
José e o galego Xosé. Da mesma forma, o ditongo ui pelo ditongo oi, donde o
português "muito" e o galego "moito". Os falantes de ambos
os idiomas no entretanto se compreendem perfeitamente, dada a sua similitude.
Por
influências castelhanas, o Galego adquiriu outras características próprias a
partir do século XI, processo que veio a culminar no reinado de Afonso X , o
Sábio (Toledo-1221, Sevilha-1284), rei de Castela e de Leão (1252-1284),
imperador germânico ( 1257-1272), quando o Galego foi assumido como o idioma da
poesia na Península. O próprio rei compôs cerca de 420 cantigas em Galego, em
honra da Virgem Maria (Cantigas de Santa Maria). Tal situação alterou-se no
século XIV, quando o Castelhano passou a ganhar terreno, vindo a constituir o
Espanhol comum.
Com
a decadência política da Galícia, os cancioneiros foram esquecidos e, com o
correr do tempo, o Galego passou a ser considerado uma língua inculta. Após
quase meio milênio, o seu renascimento veio ocorrer apenas em meados do século
XIX com o Romantismo, com a valorização do passado medieval e das tradições
locais. Não sem razão, foi um escritor galego, Nicomedes Pastor Díaz (1828-1863),
um dos iniciadores do Romantismo na Espanha., sendo sua obra A alborada (1828)
geralmente reputada como a iniciadora da literatura galega moderna.
Também
a linguística auxiliou a preparar o ressurgimento literário e da dignidade do
Galego, com os trabalhos do precursor Xoan Manuel Pinto (1811-1876), gramático
e poeta, entre vários outros como Cuveiro Piñol que publicou El Habla Gallega e
o Diccionario Gallego- Castellano (1868). O despertar histórico da Galícia
contribuiu para o aparecimento de grandes poetas como Aurelio Aguirre,
Francisco Añon y Paz, Rosalia de Castro, entre os vários que marcam o
renascimento e a maturidade literária do Galego.
Hoje,
é o idioma falado na Galícia por mais de 3 milhões de pessoas. Seu domínio
linguístico vai além da Galícia, atingindo as regiões de Leão e de Astúrias, na
Espanha, e o norte de Portugal.
Verifica-se
que na obra de Xosé Lois García há uma aguda consciência da história do Galego
e do Português, da história da Galícia e de Portugal. Desconheço outro autor
espanhol contemporâneo que a demonstre em tão alto grau e com a dimensão de sua
obra.
Em
poesia, se a maioria absoluta de seus livros está em seu idioma materno, o
Galego, a eles se deve acrescentar também títulos em Português: "Indícios
do Sol" (1988), "Labirinto Incendiado" (1989) e o belo "O
Som das Águas Lentas" (1999) de poemas sobre velhos azulejos lusitanos,
cujas fotos (de Luís Ferreira Alves) enobrecem o volume, que se abre com os
versos aplicados à figura do barqueiro, em que ressoam os ecos das grandes
navegações marítimas e dos descobrimentos:
O
SOM DAS ÁGUAS LENTAS
Xosé
Lois Garcia
Surpreende-te
a primeira atmosfera,
na
condensação do movimento em maresia
Na
íntima delicadeza da barca
estremece-te
a líquida dimensão
duma
potência solar que doura a água.
Deve
ser o teu primeiro ofício,
nesta
profunda paixão pelo desconhecido;
precisas
do contacto que transparece
em
tudo o que o barqueiro-mor
sabe
das clareiras que iluminam o eco.
Herdaste
a linhagem do marinheiro
para
poupares a espessura do líquido,
e
habitar as mudanças no próprio tempo
onde
inclinas o teu rosto meio aceso
meio
salgado para consagrar-te ao mar.
Já
eras eterno no ritual dos balanços,
e
serás mistério no pudico destino do ar.
Outro título em Português, o quarto, é o
surpreendente "Sambizanga" (Braga/Port.: Frouseira, 1999), formado
por composições de inspiração angolana, livro prefaciado por Pires Laranjeira
(Paris e Coimbra, Junho de 1999), que bem ressaltou: "A publicação deste
livro, significativamente intitulado Sambizanga - o bairro mítico do filme
homônimo de Sara Maldoror, de algumas estórias de José Luandino Vieira, e do
nacionalismo angolano, em geral, de Mário Pinto de Andrade a António Jacinto e
Viriato da Cruz -, vem acrescentar à obra de Xosé Lois García franjas do
território imaginário da lusofonia. Vem propiciar-nos a perspectiva aproximada,
por via poética, do lento deslocar do discurso de uma galaico-lusofonia que é
propiciatória de amplas leituras sociogramáticas, de deslocação do sentido
unívoco do 'poeta' tutelar para o da sociabilidade abrangente, mas não
'universalista', de um mundo extra-galego, mas paragalego, extra-espanhol e decisivamente
não-castelhano" (p.11).
Com
relação a autores angolanos, muito tem feito XLG. Além de tradutor da obra de
Agostinho Neto (escritor e primeiro presidente de Angola livre) para o
Espanhol, sobre este autor publicou vários ensaios que abordam sua poesia, bem
como a de João Maimona. Entre eles: "A Bíblia, presente em Sagrada
Esperanza"; "Música e dança na obra de Agostinho Neto"; "A
Medicina, na poética de Agostinho Neto"; "As fogueiras de África na
obra de Agostinho Neto". Em 1995 lançou um estudo fundamental sobre a
vida, o pensamento e a obra de António Jacinto, outro poeta angolano,"
Jacinto: a luta do poeta-guerrilheiro contra a alienação". Já escreveu
inúmeros prefácios e ensaios curtos de análise crítica de vários escritores de Angola,
país que já visitou, entre outros na África.
"Homenagem
a Angola no XXV aniversário da sua independência nacional (1975- 2000) - Textos
e edición de Xosé Lois García" ( A Coruña, Ediciós do Castro, 2000) dá-nos
notícia de três viagens de XLG a Angola e exibe fotos por ele tiradas de
aspectos populares do país, de alguns de seus escritores mais conhecidos e de
capas de alguns de seus livros, como António Jacinto, António Cardoso, Uanhenga
Xitu, Arnaldo Santos, Costa Andrade, Henrique Abranches, Luandino Vieira,
Pepetela, João Maimona, entre outros, e dos jovens como Amélia Dalomba e Lopito
Feijóo.
O grande organizador de
antologias
Grande
trabalhador intelectual, XLG já traduziu ao Espanhol um sem número de poetas de
expressão portuguesa, com eles organizando importantes antologias da poesia
contemporânea de cada país lusófono. Tais traduções ao Espanhol têm por
objetivo uma ampla divulgação na Espanha, nas Américas e em outros continentes.
Entre elas:
Antología
de la Poesia Actual Portuguesa (Barcelona, 1982); Poesía en Acción - antología
de poesia de Moçambique ( Saragoça, 1986); Poemas a la Madre África - antología
de la poesía angolana del siglo XX (A Coruña, 1992); Floriam Cravos Vermelhos -
antologia poética de expressão portuguesa em África e Ásia ( A Coruña, 1993);
Antologia de Poesia Feminina dos PALOP {Países de Língua Oficial Portuguesa} (
A Corunha, 1998); Antologia de la Poesia Brasileña ( Santiago de Compostela,
2001).
Nós
brasileiros temos com XLG uma dívida especial de gratidão pela recolha de nossa
poesia contemporânea que incluiu 44 autores, entre os quais: Antônio
Brasileiro, Aricy Curvello, Astrid Cabral, Carlos Nejar, Cassiano Nunes, César
Leal, Hugo Mund Júnior, Joanyr de Oliveira, Jorge Tufic, José Santiago Naud,
Lêdo Ivo, Myrian Fraga, Raquel Naveira, Renata Pallottini, Ruy Espinheira
Filho, Susana Vargas. Sem sombra de dúvida, é uma das mais atualizadas e
equilibradas antologias da atual poesia do Brasil, exceto os concretistas, em
idioma espanhol. A publicação pela galega Edicións Laiovento foi tornada
possível pelo Ministério da Cultura do Brasil (MINC) / Fundação Biblioteca
Nacional, por meio do Programa de Apoio à Tradução de Obras de Autores
Brasileiros.
Não
deixou XLG de também dar existência a coletâneas temáticas, como "Junto ás
Águas Velhas - Poemas ao Castiñeiro de Podente (Braga/Port.,1999), com poetas
lusófonos e galegos, e o interessantíssimo volume que é "Sursum Corda -
Poesia Galego-Portuguesa ao Viño" ( Santiago de Compostela, 2000), este
último com a parceria de Carlos Dias Martínez na seleção e organização.
Tanto
como tradutor de poesia quanto como ensaísta, XLG tornou-se um grande
conhecedor e divulgador das literaturas de expressão portuguesa. Sem dúvida, um
dos maiores, senão o principal deles, em Espanha e no mundo hispanoamericano.
A
Xosé Lois García, nossa gratidão e nosso aplauso. Sobretudo, nossos
cumprimentos por sua vida e por sua obra, nesta bela altura de seus sessenta
anos em 2005, ocasião em que é justamente homenageado.
__________________
Sobre
o autor:
*Aricy
Curvello, poeta brasileiro, ensaísta e tradutor. Autor de, entre outras obras:
"O Acampamento" (poesia), "Mais que os Nomes do Nada"
(poesia); "Anto: revista portuguesa de poesia" (ensaio, Museu/Arquivo
da Poesia Manuscrita, 2000); "Uilcon Pereira: no coração dos boatos"
(ensaios, Prêmio Joaquim Norberto, da União Brasileira de Escritores, 2001).
E-mail: curvello.vix@terra.com.br
Às
belezas heróicas te comparas
E
em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós
todas as nobres taras
Daquela Grécia
esplêndida e tranquila...
É tanta a glória
que nos encaminha
Em nosso amor de
seleção, profundo,
Que (ouço ao
longe o oráculo de Elêusis)
Se um dia eu
fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia
um mundo
E do teu ventre
nasceriam deuses...
___________________________________
Fonte:
1. Wikipedia e
Jornal da Poesia
2. Luz
Mediterrânea.
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