sexta-feira, 9 de novembro de 2012

CRÔNICA: AS FUNÇÕES DO BANHEIRO – NOME ATUAL

              
Francisco Miguel de Moura*

Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras
Teresina, PI AUÍ -BRASIL e membro da IWA 
(InternationalWriters and Artists Association
Toledo, OH, Estados Unidos).



       Há muitas funções para o banheiro. A primeira é a do banho como o nome indica, mas não a mais importante, porque há pessoas que passam dias sem fazer este acerto de conta com a limpeza do corpo.  O normal seria fazê-lo uma vez por dia. No Brasil é assim. Na Europa é apenas uma vez por semana, dizem. A segunda, que engloba também a terceira, é fazer necessidades fisiológicas – expressão muito vaga, pois nossas necessidades fisiológicas são muitas. Sem meias-palavras, essas necessidade fisiológicas se referem a mijar e fazer cocô. E são para estas que mais recorremos ao banheiro. Daí porque o leitor já deve ter ouvido, só em nossa língua, outros sinônimos mais usados para a palavra banheiro: privada, latrina, reservado, sentina, sanitário, etc. Mas há uma função mais nobre, no caso a quarta que foi comentada numa crônica do escritor Rubem Alves, do livro “Pimentas”, editora Planeta, São Paulo, 2012.  É a da leitura. O banheiro é um lugar muito próprio para leitura de vários tipos: literatura, humor, poesia, conhecimentos gerais... E até romances. Eu acabo de ler o romance "Onde vais, Isabel”, de Maria Helena Ventura, de quase 300 páginas, boa parte da sua leitura feita no banheiro - o local mais fresquinho da casa e mais silencioso. Sem mentiras. Dessa autora aprendi que o D. Dinis, o trovador, 6º rei de Portugal, casado com D. Isabel,  santificada pelo Papa da época, foi quem decretou o dialeto português oficial em Portugal, dialeto ainda ligado ao galego, ao espanhol e outros falares locais. Aprendi também que D. Isabel, quando saiu do reino de Aragão para desposar D. Dinis, levava um grande tesouro consigo - um segredo - até chegar ao seu destino e entregá-lo ao rei.

      E então, para que o nome “banheiro”, se às vezes nem chuveiro o tal reservado possui? Por que não o nome de privada? Mas, não há meio, a gente está apertado na rua, entra numa loja ou repartição, e pergunta: - Aí tem um banheiro? Ou onde fica o banheiro?  Dá licença? E vai lá, na privada. Mesmo porque não há privadas públicas e quando as há são insuportáveis, não têm a menor conservação, a gente pode até adoecer servindo-se delas. Aliás, um dia desses fui postar umas cartas na agência central dos Correios e tive necessidade de urinar – essa é uma necessidade que ocorre sempre, visto que o calor tropical exige que se beba muita água. A funcionária me disse que não havia privada para os clientes, somente um banheiro reservado aos funcionários. Depois que reclamei que era de lei toda repartição que atende ao público ter um banheiro para quando alguém precisasse, ela disse que me levaria (e levou) ao dos funcionários, como se fosse um favor e não uma obrigação legal.

      Há uns dois anos, eu vivia numa casa grande, mas troquei por um apartamento, condizente com a vida moderna, quando não se pode pagar mais do que um empregado doméstico, quase sempre uma cozinheira que também lave a roupa.  Mas, na casa, mesmo mais ou menos ampla, sempre achei interessante ler no banheiro. Ali, ninguém era perturbado, o que não me surgiu foi a idéia de fazer uma bibliotequinha dentro. E aqui, no apartamento, propus seriamente a biblioteca. Depois da instalação de um ventilador, iniciativa da mulher, em cada banheiro, minha proposta tinha muito a ver. Ela riu como que aprovando. Não sei se minha proposta vai ser executada. No banheiro, eu posso ler meus poetas Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Castro Alves e até Camões, quem sabe, “Os Lusíadas”. Por falar nesse imenso poema que fez a nossa língua firmar-se verdadeiramente como língua de civilização, podemos dizer que ele traz uma sabedoria imensa em suas páginas, e só no silêncio do banheiro é que poderíamos interpretá-lo em profundidade. No banheiro, nada deve ter a nos atormentar: rádio, celular e de outras maquininhas de mão cujos nomes não sei. Vou dizer apenas uma, como já ouvi: “ipade”. Mas é escrito “ipode”. E pode? No banheiro, não. Contracultura. Descartável. O que é salvo num segundo, no seguinte já é deletado... Cultura não se descarta: conserva, cultua. E a gente pode ficar tranqüilo que guardará por muito tempo, incorporado, o que leu, sentiu e sonhou para própria vida. Sim, porque no banheiro se pode até sonhar com emprego, namorada, divulgação de algo interessante e de interesse para a riqueza cultural da pátria.  Há melhor sabedoria do que ter aprendido a viver bem? Pela cultura se aprende a viver bem. Não pelos livros de auto-ajuda, mas se possível por todos os livros de alta ajuda: romances, contos, novelas, história do país e do mundo, etc. O exemplo da leitura, no banheiro, deve ser repassado às crianças, lugar principal para começar a educação delas: Não jogar papel servido no chão (pra isto, lá deve ter um cesto), dar descarga depois de servir-se, e, enquanto se serve, ler toda a boa literatura infantil, de Monteiro Lobato a Cecília Meireles, chegando, certamente, até os mais novos escritores – que são muitos.

      Daqui a pouco, como sugeriu humoristicamente Rubem Alves, o papel higiênico deve ser todo ele impresso com pensamentos dos melhores pensadores e poetas, de Sócrates a Jesus Cristo, de Neruda a Hermann Hesse, de Adélia Prado a Mário Quintana e Manoel de Barros. Do último, ele citou um verso bem a propósito deste tema e crônica, com o qual quero terminar: “Também as latrinas desprezadas que só servem para ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas”.

______________________
(Publicado no jornal O Dia, Teresina, 03.11.2012)

6 comentários:

regina ragazzi disse...

Ah poeta, eu me delicio cada vez que venho aqui. Então, eu sou adepta desta prática. Nada como o banheiro para ler e divagar. Muitos dos meus textos nasceram dessas divagações. E te digo mais, muitas tb foram escritas lá. Já sai debaixo do chuveiro pra escrever...rsrs
Só não tinha pensado na biblioteca, mas tem um cestinho com revistas...
Abraço grandão amigo.

CHIICO MIGUEL disse...

Regina,

Quase morro de rir de alegria de encontrar alguém, logo você, minha amiga, adepta de minha idéia. A crônica eu pretendo espalhar por mais lugares. Falei sobre o assunto na Academia Piauiense de Letras. Por que não? Para nós, que moramos em clima tropical,o lugar mais fresquinho é o banheiro, que também o de mais silêncio, além de ser o de maior respeito - só os mal educados precisam perguntar se "tem gente aí"?, quando a parta está fechada. Sem dúvida lugar ideal para ler, pensar e fazer exercícios de meditação, entre outros.
Obrigado, amiga, te pago com um beijo, quando a gente se encontrar, mas daqui te mandos um cheirinho e abraço do coração.
Chico Miguel de Moura

JAIRCLOPES disse...

Limerique

Se usuário da latrina sois
Melhor é não deixar para depois
Aquela regada no vaso
Que não está ali por acaso
Mas principalmente o número dois.

Nádia Santos disse...

Boa tarde Chico, se assim me permite chama-lo, estou vindo do blog da Regina, onde ela sugere uma visita a este teu cantinho, tão lindo para apreciarmos essa leitura. Alias, maravilhosa leitura, confesso que já fiz poesia no banheiro e gosto de ler também, o banheiro só perde para minha cozinha... Ah minha cozinha, é o lugar da casa que mais fico e é ali que escrevo minha poesias. Voltando ao banheiro... no calor de São Luis (Maranhão, seu vizinho) ler, e compor lá, é ótimo pois além do silêncio posso ficar literalmente à vontade. (rsrsrsr) Foi um imenso prazer te ler, vou aproveitar e vou ficar e prometo voltar mais vezes. Um forte abraço e muitas felicidades para ti. A propósito a idéia da mini biblioteca no banheiro é ótima.

CHIICO MIGUEL disse...

Nádia Santos, que baita comentário! Gostei da sinceridade. A Regina Ragazzi é uma amiga de quem não me afasto, tão simples, tão modesta, tão hai-kai, lindos os seus poeminhas nessa forma e a maneira como trata seu blog. Muito obrigado, a você, Nádia, pela visita e comentário. Qualquer hora vou te visitar virtualmente.
Abraços com carinho
chico miguel

CHIICO MIGUEL disse...

Caro Jair C.Lopes,

Se você conhece o Nordeste, sabe: O banheiro é um lugar sagrado. Pessoas que não são da família, só podem entrar pedindo licença. Mas é melhor, antes perguntar:
- Posso ir ao banheiro?
Claro que, se não se tratar de um desconhecido, a reposta é sim. E o dono da casa ou outro que lhe faça as vezes, o acompanhará até a porta, abre-a e o deixa lá, na paz da "Privada".De lá a gente manda telegrama (e-mail) para Lula, Dilma, et caterva.
O banheiro é um lugar aonde quem se adentra pode servir-se à vontade.

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