quinta-feira, 28 de agosto de 2008

NOITE

Crônica

Clauder Arcanjo*

Toda noite traz um bocado de melancolia. Os homens se recolhem um pouco mais para dentro de si, escavam as suas profundezas, mergulhando no seu íntimo, a escarafunchar sofregamente os socavões da memória. Pelo menos assim ocorre com muitos.

Quando o sol se põe, e a natureza entra em processo de hibernação, sempre me volto para as reminiscências. Flagro-me, então, calado, arrastando os chinelos do passado no terreiro do presente.

No mais das vezes, suspiro fundo e dirijo o rosto para a estrela mais alta, e, para mim, a mais distante. A que me dá um quê de infinito. A luz assim, em forma de sinal no tecido escuro do céu, lembra-me o homem. Um ponto em meio à infinitude do universo.

É claro que, nesses casos, a filosofia, irmanada com a poesia, faz menção de brotar em mim. Não através de uma catarata de palavras desconexas, no vômito dos prolixos. Não, o que se me dá nessas ocasiões é o vocábulo em murmúrio, a surgir por entre os lábios fechados, gota a gota, em ritmo de confissão.

A poesia, esta sim, fala pelo silêncio. Quando nos voltamos para o nosso âmago, e ao nos surpreendermos sozinhos, ela aparece altaneira, apesar de vestida de humildade. Com os olhos rasos, com seu ponteio triste, a desvendar os mistérios inalcançáveis, a traduzir-nos as assombrações mais inusitadas, escondidas no tear das dúvidas, no sótão das ansiedades.

Por isso percebo que muitos homens e mulheres têm medo da noite. Fogem dela desesperadamente. Quando se vêem frente a ela, acendem luzes, ligam tevês, aparelhos de som, juntam-se em bandos, a conversarem em voz alta, como se conseguissem fugir da sua trama.

Ao chegarem em casa, exaustos, ainda ingerem pílulas de dormir e mergulham nos lençóis, torcendo para que um pesadelo não os importune. O bicho-homem é bicho esquisito!

Nós, poetas, adoramos o sereno da noite. É ele que nos leva ao cume da concentração, ao encontro com nós próprios. Solitários e em comunhão com as desventuras de toda a humanidade.

O barulho nos inferniza. Não é nos outros que nos descobriremos, mas sim no íntimo da gente. Lá, exorcizaremos nossos fantasmas, expurgaremos os erros, nos redimiremos das faltas. Enfim, limparemos as cinzas do passado, e deixaremos a terra limpa e pronta para o amanhã.

Alguns acham que enganam a noite. Mera ilusão. Ela pode até recuar estrategicamente, porém, numa madrugada qualquer, o fujão cairá em seus braços. Por isso há ocasiões, em meio à calmaria mais profunda, em que ouvimos um grito desesperado a cortar o véu da cidade. É o clamor do reencontro com as trevas.

Eu já passei da fase de fugir da noite. Rendo-me aos encantos dessa fada incomum. Que pune e me encanta. Que me sufoca e me oferta um néctar picante.

— E o medo do escuro? — você me indaga.

Sempre tenho e terei. Mas, tal qual um brinquedo que nos dá um frio na barriga, ele me extasia com os seus riscos.

Semana passada, por exemplo, junto ao mar, pus os olhos na direção da lua.

Ela estava enfronhada nas nuvens. Catei no céu um astro bem distante, e, em pouco tempo, estava mergulhado no fundo de mim. A estrela era eu.

Visitei a meninice — brinquedos, aprendizados, receios, molecagens; papeei com os amigos da juventude — festas, primeiros namoros, descobertas, pavores juvenis; e corri depressa ao terreno da maturidade.

Ao chegar ao tempo atual, defrontei-me com quase os mesmos mistérios de outrora. Apenas a sensação de que o invólucro era mais maquilado, num esforço para fingirem-se de essenciais, ou diria melhor, de mais sérios.

A noite e seus sortilégios me revelaram que tudo não passava de uma farsa.

Na verdade, reconheci que a minha maior e melhor parte estava firmemente ancorada na infância remota. Os valores fundamentais, os receios e certezas tinham raízes naquela época. A noite nos leva a isso. Pois só no silêncio é que nos deciframos.

Fecho esta crônica e retorno ao alambrado, é tempo de fitar mais uma vez a imensidão do firmamento, antes de cair na cama para ter com os deuses e fantasmas que habitam em mim.

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*Clauder Arcanjo. Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão, espaço Questão de Prosa, edição de 17 de agosto de 2008. clauder@pedagogiadagestao.com.br

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